sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Olhos de selva

Mais um dia em que eu tinha escolhido não ver. Não ver parecia sempre a melhor solução. E mesmo quando, de repente, o sol parecia brilhar num verde de esperança, lá voltava à escuridão da ignorância. Como é confortável não saber. Não querer saber.  Mesmo quando a sombra da minha consciência, que aparecia de uma forma absolutamente antibiótica 4 vezes ao dia, a opção era sempre buscar a escuridão.  Mais vale sózinho que muito mal acompanhado. São coisas que a vida, quando tem tempo, nos ensina. No outro dia, para ver se combatia essa solidão, comprei uma pequena árvore. Mas 'pequena' e ´árvore' são duas palavras que não combinam. Uma árvore tem que ser grande, imponente, antiga. Por isso, para lhe gerir a carreira, fui colocá-la ao pé da janela para ela realizar a fotossíntese. E ela cresceu, cresceu, cresceu. Para cima, para os lados e até para trás. Eu não conseguia ver nada dentro desta selva em que se transformou a minha casa. E também não me importava. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

10 gramas de beleza.

Era uma vez uma gata. Tão abelhuda, quanto bela. Nessa tarde, o seu coração batita, batia, batia, com um ritmo tão alucinante que parecia não parar nunca. Ela também não queria que parasse, na realidade. Alguém lhe havia roubado dez gramas de beleza. Por isso, por mais que tentasse aquilo não lhe saía da cabeça. Não conseguia estar sossegada. ‘Quem terá sido? Quem terá cometido tamanha desfaçatez?’, perguntou-se a gata milhares de vezes. Pouco depois, recebeu a notícia que o peixe tinha acabado. Logo hoje. Duas coisas no mesmo dia: menos beleza e menos peixe. E aquele salmãozinho tão fresquinho! É melhor que pôr kiwis nos olhos. E foi então que decidiu fazer um lifting e uma cirúrgia estética que é como quem diz, uma plástica. Mas primeiro passou pelo oculista e comprou duas lentes de contacto bem azuis. Quando tudo parecia encarreirar, eis que a sua senhora parecia endoidar: a dançar em sutiã em frente ao besuntoso do segundo andar. ‘Vou-me mas é esconder atrás do espelho, não vá levar com o sutiã, que a bem dizer não me serve de nada, ou com umas boxer em cima. Ai, Deus me livre, boxer não que é cão, ainda se fosse um persa. Mas que se mexesse que os mansos não me levam a lado nenhum.’ Mas, a surpresa estava para vir. Qual sutiã, qual boxer, o que lhe caiu em cima foi o jovem felino do besuntoso que também tinha vindo à festa, para não ficar sózinho. E se era assanhado o menino. O que é certo é que a gata quando se olhou de novo ao espelho nunca mais se lembrou que lhe tinham roubado as dez gramas de beleza.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Uma folha em branco.

Perante uma folha em branco, tudo pode acontecer. Perante uma folha em branco, bloqueio. Dou voltas. Grito. Normalmente elouqueço. Depois volto a mim. Volto a elouquecer. Acrescentar algo a uma folha em branco é o maior desafio que se pode vencer. Não sei se é da cor ou do medo. Do medo de criar alguma coisa que só tem um admirador. Eu.

O Assassínio de K.

O quarto do primeiro andar estava escuro. A criança dormia já fazia alguns minutos. O poster do Homem-Aranha, colado com pedaços desiguais de fita gomada, protegia o seu sono pueril. Em frente, um Noddy passado do prazo resignava-se com o seu estado jurássico. No chão, alguns carros estacionados fora da garagem, ao lado de um Action Man e uma Tartaruga Ninja. Só se ouvia o som do silêncio da noite. A lua observava de longe, como de costume, iluminando o caminho. Tinha chegado a hora. O Ken tem que morrer. Vou-lhe partir aqueles biceps de plástico ordinário. Benjamim respirou fundo. Pegou nos chupa-chupas pneumáticos e aproximou-se deles. Barbie dormia com dois kiwis nos olhos por causa de duas teimosas rugas que só ela conseguia ver. Ken ressonava alarvemente. ‘Ainda ressonas, fanfarrão? Nem imaginas como vou acabar com essa tua vida insignificante de plástico chinês.’ Nisto, ergueu as armas. Mas quando ia esmagar aquele que considerava o seu adversário, um pesadelo ali perto desperta Barbie. Benjamim hesita e esconde as armas atrás das costas. Barbie assustada e surpresa por ver Benjamim ali tão perto. pergunta-lhe bruscamente ‘Que fazes aqui?’ ‘Ouvi-te agitada e trouxe-te algo para ficares mais calma’, estendendo-lhe os chupas. Com desdém, Barbie aceita-os e leva-os à boca. ‘Detesto ananás, como te atreves? Vai-te inútil!!’ E volta a dormir. De lágrimas nos olhos, Benjamim volta ao seu espaço, inundado pela raiva. Pouco depois, regressa com novo chupa.’Barbie, acorda!’ ‘Tu outra vez!’?’ Trouxe de morango, vês?’ ‘Ah, finalmente acertaste em alguma coisa. Vai, agora podes ir.’ Barbie provou o doce sabor do morango que lhe ia tirar a vida.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Fazer vaquinhas.

No outro dia conheci uma vaca que vivia a crédito. Para produzir leite pediu um empréstimo. Para tirar o leite pediu um empréstimo. Para o embalar pediu um empréstimo. Depois, percebeu que nem sequer era vaca leiteira. Talvez, na melhor das hipóteses, uma intermediária. Nos dias seguintes ainda tentou pedir mais um empréstimo para pagar os outros, mas não conseguiu porque lhe disseram que não tinha ‘futuros’. Nem expectativas nem garantias bancárias. Como tinha perdido o emprego como intermediária, ofereceu-se para modelo, daquelas que estão quietas e muito nuas para serem pintadas pelos meninos e meninas que tiram cursos para saberem pintar melhor. Mas, como era um bocado tímida queria sempre tapar as indecências, coisa que não era permitida. ‘Isto aqui é como a Bolsa de hoje em dia, minha querida. Tudo para baixo.’ Talvez um dia quando acabar a crise possa voltar a ser uma simples vaca, mas continuará a não ter nem dinheiro e, ‘futuros’, quem sabe?.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Por um cabelo.

(os nomes desta história foram alterados para ninguém poder identificar os intervenientes)

Madalena, rapariga-mulher dos seus 29 anos, regressava a casa depois de mais uma noite naquele part-time ridículo e entediante. Pela primeira vez, ia conseguir dormir uma noite inteira ao lado de Zeus. Chegavam ao fim, os sonos mais ou menos tardios no banco de trás de um automóvel emprestado. Sim, Madalena gostava de dormir com Zeus, o seu namorado. Ao contrário do que o nome podia fazer pensar, não era forte e,muito menos, era Deus. Aliás, teve para se chamar Deus se a mulher do registo não tivesse carregado na tecla ao lado. Ficou Zeus, paciência. Madalena até achava graça. Zeus tocou à campaínha e Madalena abriu-lhe a porta com um sorriso. Ele vinha com aquele ar de quem vem passar um fim-de-semana que dura para sempre. Ela serviu-lhe uma limonada, pois Zeus que é Zeus não se mete no álcool. Tirou-lhe o chapéu e beijou-lhe calorosamente a cabeça. De repente, ainda a sua língua deslizava por aquela superfície calva, Madalena gritou: ‘És indecente. Tu prometeste-me que o tiravas!’. Correu para a cozinha e regressou com uma tesoura com que cortou o último cabelo que lhe restava.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A escada em caracol.

Depois de um almoço bem comido, com direito a gelatina à sobremesa, João e Caddy, o cocker, correm alegremente pela casa. Ao fim do corredor, longo e um pouco escuro, a escada em caracol. Sempre quiseram fazer isto. Mas, por uma razão ou por outra, foram adiando este momento. ‘Empurras tu ou empurro eu?’. Como em tantas outras ocasiões mão e pata unem-se. A mãe, sem perceber que tudo o que sobe também desce, cai abruptamente pela escada em caracol, enrolando-se como pode, para evitar alguns hematomas. Desta vez, foram longe demais. Refugiam-se imóveis, no vão do local do crime, o seu esconderijo habitual. O pai de João, Afonso, alertado por gritos aflitivos de enorme dor, chega ao fundo da escada e percebe o estado grave da sua esposa. Logo agora que era aquele dia da semana em que todas as fantasias vinham ao de cima, depois de João ir dormir. Afonso ligou o 112 e esperou sentado no chão, ao lado de Sofia, pegando-lhe sentidamente na mão. Mas, não tirava os olhos de todos os sítios de onde pudessem surgir os pequenos criminosos. Entretanto, e já com o ar a rarear naquele espaço minúsculo, João e Caddy, permaneciam imóveis, inundados por um misto de culpa, mas também de esperança de não virem a ser descobertos. Uma pequena abertura era agora o seu único contacto com a vida na casa. Contudo, era suficientemente grande para Caddy começar a ficar enervado com as constantes passagens de Gomez, o siamês da vizinha. Gomez que não era parvo, já tinha percebido a cena toda. Era altura de Caddy pagar aquelas maratonas à volta mesa, em que Gomez era uma espécie de isco que corria à frente dos predadores. Caddy vai resistindo como pode, mas a provocação de Gomez torna-se cada vez mais evidente. Num salto, o cocker inicia uma perseguição atrás do gato, esbarrando nas pernas de Afonso. João nunca mais se esqueceu daquele dia. Ficou para sempre tatuado na sua cara. Cinco longos dedos decoraram a sua bochecha, tornando-a ainda mais encarnada. Nunca perdoou a Caddy, esta sua fraqueza de personalidade. A partir desse dia, a mãe coleccionou dedicatórias no gesso e fantasias em todos os outros sítios.

sábado, 18 de outubro de 2008

Escrever bem.

Escrever bem? Não sei o que é. Uns dizem que o Miguel Sousa Tavares escreve bem. Outros, ou os mesmo, dizem que o Saramago escreve mal. Nem sei quais são os critérios. Será seguir regras gramaticais? Sujeito, predicado, complementos. Tudo bate certo com tudo. Se calhar demasiado certo. E dá sempre resto zero. Gosto de ler uns. Não gosto de ler outros. Escrever bem, não sei o que é.

Feelings

A indiferença mata. Eu tenho terror da indiferença. Muitas vezes, acho que o amor foi de férias. Não sei, se calhar hibernou. A amizade devia ser como os antibióticos. Devia-se tomar, pelo menos de oito em oito horas. O amor é como a amizade. Mas com sal e pimenta.
Onde há incompreensão os extremos não se atraem. Repelem-se. Desequilibram-se. Se a cumplicidade é algo de bom, porque é que ter um cúmplice é sempre mau?

Acerca das flores

Quero que as flores se vistam de flores
Quero que as flores invadam a Terra
As flores são as palavras sem palavras
As flores são olhos que se olham nos olhos
Há flores que são tudo
Há flores que são nada
As flores são assim.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Metrónomo

Na cozinha os pingos caíam suiçamente. Ping, ping. Sempre à mesma hora, minuto, segundo. Na sala, uma caneta escrevia palavras que pareciam iguais linha após linha. Na televisão, as notícias repetiam-se em caracol. Um relógio, na parede, estava certo, segundo sim, segundo sim. Os Supertramp nunca se enganavam, tocando no estéreo do canto. A menina, sabe-se lá onde, dava estalidos com a boca, sempre na mesma frequência. Numa mesa, bola-ping, bola-pong. Eu cheguei e parti a porcelana toda. Depois, o meu cérebro desligou-se.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

A brincar, a brincar…

‘Pequeninos poemas de Shirasu escritos a pensar ou a brincar.’ Aqui há tempo li esta frase num jornal diário e achei-lhe piada. Não que me tenha deitado no chão à gargalhada, mas sim porque encontrei algo em que acredito, e levou-me a esboçar um sorriso daqueles. Daqueles que às vezes nos acontecem, quando o acaso encontra a verdade, e ficam felizes para sempre. E assim foi. Coisas feitas a pensar ou a brincar. Pois, voto nas duas. Pensar e brincar são duas coisas que deveriam andar sempre lado a lado, cruzando-se várias vezes ao dia. Se eu quiser chegar a algum lado a pensar, convém que eu consiga brincar. Brincar significar libertar-me para conseguir pensar. Que é como quem diz, pensar sem barreiras. É cortar de vez com as amarras que para aí existem impunemente, sempre afirmadas e reafirmadas pelo arautos da verdade. Em nome da verdade, por favor não brincar. Apenas pensar. Eu pessoalmente continuo a adorar as duas. Mas primeiro venha a brincadeira. É que quanto mais brinco, mais penso, mas nem sempre quanto mais penso, mais brinco. A coisa é mesmo assim. Penso, logo brinco ou será antes, brinco, logo penso?

O amor de futebol ou o futebol de amor?

Hoje apetece-me falar sobre futebol. Não do meu Sporting em particular, mas do tema em si. Como também gosto de amor, acho que vou juntar as duas coisas. Aliás, acho que o futebol e o amor são exactamente a mesma coisa, com pequeníssimas diferenças. E muitas coisas parecidas, também. No futebol cada vez que se marca um golo, a paixão aumenta. No amor também. No futebol cada vez que alguém falha, chamam-se nomes. No amor também. Quando o árbitro erra, chamam logo nomes à mãe. No amor inevitavelmente também. No futebol, quando se troca de clube é-se logo traidor e outras coisas carinhosas. No amor nem se fala. Só de pensar já há traição. No futebol, quando se joga directo, o meio-campo fica a ver navios. No amor, quando não há preliminares, ou se é adolescente ou foi comprado. No futebol, quando não se vai aos treinos não se joga bem. No amor, não ir aos treinos é andar sempre com dor de cabeça. No futebol quem não marca, sofre. No amor é igual. O futebol e o amor são iguais.
Apenas com uma diferença: a paixão no futebol é para toda a vida. No amor, nem por isso.

Muda o script

Se tivesse de escrever sobre o dia de hoje, tirando o rescaldo de quando alguma equipa portuguesa ganha aos estrangeiros (finalmente ficamos à frente de alguém), não se regista nada de muito interessante. Ou se fala de crise ou se fala da crise. E, não será por acaso que quando a crise começou, a onda de crimes se tornou, diria, menos viva. Mas, deixemos este tema para outro dia. Assim, se não há nada de interessante para se falar e escrever sobre, então fale-se de política. Pois bem, hoje tive a sensação que vi um político realmente interessado em dois ou três problemas da nação. E quando o vi, acho que estava com a cassete desligada, porque não estava contra os outros partidos. Estava mesmo a tentar perceber a raíz do problema. Se fosse o Pacheco Pereira diria ‘essa sim é a questão essencial’. Bom, mas voltando à raíz do problema, deparo-me logo com duas coisas importantes: a raíz, que como se sabe tem a sua na sua, e portanto, está lá para baixo. E o problema, que como todos sabemos vem sempre no lugar do desafio e, muito atrás da solução. Porque se quer ser reconhecido e valorizado, há que ser problema. É que ser solução é uma coisa um bocado burguesa. Quem tem problemas é gente. Quem tem soluções é burguês. Faz sentido? Talvez nem tanto, mas também os Estados Unidos invadiram o Iraque à procura de bombas de mau cheiro e toda a gente achou que fazia sentido. Os gajos vão lá e acabam com aquilo num instante e ainda vêm passar o Natal a casa. Só não sabiam era de que ano. E também me tinha esquecido que eles já tinham o Vietname no CV e a coisa não tinha corrido por aí além. Ainda hoje o Chuck Norris aparece, de vez em quando, como a Música no Coração no dia de Natal. Mas o que é certo é que agora até vão mudar de Presidente e andam todos atarefados. Vai mudar o script.

Coração-bomba.

Disseram-me que se escrevesse durante muitas semanas seguidas, sem quase parar para respirar, ia sentir uma enorme diferença. Deve ser mesmo para expurgar o que de merda existe para ser escrito, para depois escrever o que é bom. Mas é sempre a eterna questão do que é bom e do que é merda. Muitas vezes escrevo muita coisa que se encaixa perfeitamente na segunda categoria. Só não cheira mal, mas de resto está lá tudo. Ausência de ideias, discurso da treta, palavras mal escolhidas e sei lá mais o quê. Só não soa bem, pronto. Mas, também muitas vezes é mesmo escrever sem pensar, escrever tudo o que vem à cabeça. É como quem diz, fecha lá os olhinhos e escreve com o coração. Ora, se vem do coração devia ser bom, porque toda a gente diz que o coração é puro, e isto e aquilo. Eu não acredito muito nisso. Muito sinceramente, o coração não é todo encarnadinho e queridinho. Há, de certeza por lá, algumas personagens menos bem intencionadas, para equilibrar o ecossistema. Não é por acaso que o coração bate na onda do inspira-expira. Se fosse totalmente bonzinho só inspirava ou só expirava e, portanto, isso é que era sufocar. E, como sabemos, um coração sufocado fica doente, chegando mesmo a perder a cor. Se calhar, fica verde. O que para mim até nem é mau, porque sou do Sporting. Seja como for, o coração não pode ser uma coisa totalmente boa. Logo para começar é algo que bombeia. Ora nos tempos que correm, uma bomba é uma coisa que não é assim muito bem vista, por causa dos terroristas. Bem, matar pessoas não é uma coisa com que eu simpatize. Mas se fosse um terrorista de corações, aí sim, grande cena. Um gajo que se divertia a estoirar corações ao acaso. Divertido? Não sei. Eu não achava muita graça a que alguém tentasse fazer do meu um coração-bomba.

O Homem-Aspirador

O Homem-Aspirador aspirava tudo o que encontrava no seu caminho. Um dia aspirou um telemóvel para dentro de si próprio que entretanto começou a tocar e a vibrar. Que mensagem o seu interior teria para si?