quinta-feira, 22 de abril de 2010

Matrioshka

Ainda me lembro daquele dia em que o pai de amigo meu regressou do Japão e trouxe uma boneca russa para a irmã dele, que hoje sei chamar-se Matrioshka. A boneca, não a irmã, claro. Essa é a Maria que por acaso também tinha um ar de boneca, mas era de cá. No início ainda achei aquilo encaixado nos meus padrões de normalidade. ‘Que pai querido!’, pensava comigo no caminho de casa. Mas ao dobrar uma esquina, a última antes de chegar e acenar para o Sr. Luís da mercearia, qualquer coisa deixou de bater certo naquela boneca. Nem era porque dentro dela havia milhares de outras bonecas, cada vez mais pequenas, até desaparecerem da minha vista. Nem tão pouco de ter um nome que, em português soava a marosca e a negócios menos claro. Intrigou-me a sua origem. Como é que uma boneca tão russa como aquela, vinha parar a Portugal, via Japão? Por momentos tive a maior das certezas que aquela boneca tinha fugido e se havia refugiado para Oriente, para fugir a um Kenosky qualquer que a maltratava. Ou se calhar pediu asilo político, porque aquilo por lá não estava fácil para uma mulher, quanto mais para muitas dentro dela. Será que tinha múltipla personalidade? Acho que nunca vou saber. Também nunca tive coragem de perguntar à boneca que era irmã do meu amigo. E muito menos ao pai dela, que eu suspeitava que era agente secreto, daqueles que vão todos os dias para o escritório de advogados, mas têm passagens secretas que se comandam a partir do cinzeiro. Acho que ele pôs uma câmara dentro da Matrioshka, só para vigiar o pessoal lá de casa. Mas até hoje nunca parei de me perguntar. ‘Porque não trouxe ele uma boneca Kokeshi, se vinha do Japão? Talvez achasse que são bonecas de adultos. Não sei mesmo. Hoje a Matrioshka anda por lá em cima de um aparador, umas vezes sózinha, outras vezes desmultiplicada. Não tem um ar infeliz. Acomodou-se e aprendeu a viver aqui. Eu ando a pensar mandar vir um tapete de Arraiolos da China, a um amigo que costuma lá ir. Assim já vem a saber mandarim e dá-me umas lições grátis.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Paralelismos mal-educados.

Ontem à tarde cruzei-me com um paralelismo. Vinha de lá para cá, possuído de uma esbaforidação intelectual, como se não conseguisse encontrar o conhecimento que queria. Parecia que tinha uma ideia escondida debaixo da língua e não conseguia soltá-la. Estive quase para gritar ‘Há algum médico na sala?’, mas detive-me a tempo. Ele parou por uns instantes e pôs as mãos na pernas, meio curvado para a frente. Aproximei-me com algum cuidado. Entretanto recuperava lentamente o fôlego. Olhava para todos os lados, a observar em redor, como se fosse uma primeira vez. E talvez fosse. Dei mais um passo na sua direcção, ao que ele respondeu com um passo atrás, desconfiado. ‘Olha, temos um paralelismo desconfiado’, pensei. Parecia claramente estar a meio caminho de um caminho qualquer. Estava com cara de quem perseguia alguma coisa, revestida de uma importância vários graus acima do normal. ‘Do que pode estar a correr atrás um paralelismo? De uma semelhança? De uma linha paralela?’, questionei-me. E como não encontrei nenhuma resposta satisfatoriamente definitiva, dei mais um passo, e desta vez, ele manteve-se firme. Mudou o semblante e olhou-me de frente, bem no meio de uma cicatriz de infância que tenho no meio dos olhos. Aí fui eu que vacilei e dei uma de ‘Mamã dá licença’ com 2 passos à caranguejo. Perguntei-lhe em espanhol que era a língua que tinha ali à mão ‘Qué pasa?’. Como se eu me estivesse a meter na sua vida, enfureceu-se, grunhiu qualquer coisa imperceptível, numa língua que ainda hoje, após consultar vários especialistas nao conseguir saber qual, e espetou-me um soco rigorosamente em cheio no meio do meu estômago. E ainda por cima, estava fragilizado, porque que tinha acabado de engolir um sapo dos grandes. Vi estrelas. Algumas que entretanto apareciam àquela hora e as que nasceram à volta da minha cabeça e que só eu vi. Prometi a mim mesmo nunca mais tentar meter conversa ou preocupar-me com uma paralelismo que não fosse meu. É por estas e por muitas outras que prefiro as analogias. São mais femininas e delicadas.