sábado, 28 de novembro de 2009

Doido varrido

Oficialmente o Mundo está todo doido. Hoje. Tive essa certeza ao princípio da tarde. Foi um processo lento que a minha percepção se recusava a absorver, deixando-se ir em pequenos engodos que apenas, levavam a portas fechadas à chave. O que me despertou para o fenómeno foi, em primeiro lugar, a insanidade que estava a apoderar-se de quem lá vivia. Sem excepção. Uma histeria colectiva que assanhava as relações entre pessoas, e num grau superlativo, entre grupos, países e povos. A defesa do campo egocêntrico estava à flor de peles de todas as cores. Uma hiperactividade estéril, em nome de um qualquer conceito de sucesso, associado a consensos, mais uma vez colectivos. Ou talvez em nome de uma segurança, talvez pública talvez privada, que tentasse defender um râme-râme típico de mentes medíocres. A tentativa de manter, quase sempre no limbo, realidades que fazem de cada dia um desgaste da alma, em vez de a colorir com experiências enriquecedoras, torna-se uma missão que cega. E de olhos fechados, há que dar lugar ao coração. Ver com ele. Mas para isso acontecer, é ncessário que esteja aberto, pronto para absorver. Em vez disso, lá está ele apertado, bombando rancor miocardiamente. Mas, não foi apenas isso que me levou à minha descoberta do início da tarde. Certo dia, ouvi dizer que o mundo só anda para a frente com um capataz. Chego a concordar, sem grandes questões com esta afirmação, como também concordo com outra que diz que quando há liberdade a mais, o rapaz fica confuso. Até aqui tudo certo. Mas, é preciso que o capataz não seja um espectro que assombra a vida dos outros. Antes lhes mostre um caminho a explorar, para uma vitória, a que todos têm um pouco de direito. Depois, ainda há um fenómeno que faz o mundo ensandecer. E eu, por arrasto, vou com o mundo de fim-de-semana para o sanatório. O tempo, e a relação que ele tem com as prioridades. Se todos conhecessem, em níveis mínimos, os princípios do equilíbrio universal, talvez a loucura instalada fosse de boas cores. Mas, o pior que pode acontecer são reinterpretações, às vezes demasiado, livres das coisas. Por isso, se o que era para ontem, tivesse sido pedido anteontem, talvez hoje se estivesse a fazer o que é para amanhã. Mas quando, hoje se pede o que era para a semana passada, as leis universais atrapalham-se nos seus equilíbrios, desviando rotas que nunca deviam deslocar-se do seu rumo. Talvez quando se engana o universo uma vez, ele tolere. Duas vezes, fica de pé atrás. Mais que três, deixa de confiar. E universo atropelado e atrapalhado, não sabe para ir. Faz elouquecer o Mundo que fica doido varrido. Como eu estou hoje e ele já estava há mais muito mais tempo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Fracção de segundo

No outro dia cruzei-me com uma fracção de segundo. Alguns diziam-me que ia ser muito rápido e que nunca mais lhe punha a vista em cima. Ao contrário disso, esta fracção tinha muito de fracção e nada de segundo. Era mais pequena que as outras, muito meiga e parecia querer não andar sempre a correr. Por isso, quando chocámos, ali ficou. Sem pressas, perguntou-me as horas. ‘São quase 7 da tarde’, disse-lhe. Não pareceu muito incomodada. Por certo, outra fracção passaria à frente no tempo e ocuparia o seu lugar. Já eu estava com pressa para ir trocar a pilha do meu relógio que estava a entrar em tac-tic. Despedi-me rapidamente. Por uma fracção de segundo apanhei a porta aberta. Por outra, podia tê-la fechado.

Notas finais

O acordeão tocou pela última vez. Os bravo diminuiam a cada dia. Peggy sentia-se à mercê, derrotada. O medo tinha sido exigente. Na realidade, não muito mais que os anteriores. Parecia ter durado mil relógios. Não sabia se tinha sido a névoa exagerada daquela erva maricas, ou o bafo quente a álcool, de Hector. Talvez não chegue nunca a saber. Sentada no seu coito, olhou-se de frente no velho reflexo de projecções fundidas. Perguntou-se porquê? Porque não era já a mais bela? A resposta veio sob a forma de uma bala bem no meio da fronte, por entre a franja amarela e a ruga própria de quem já tinha ultrapassado o seu tempo.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

My name is Guru.

Depois de décadas de tentativas, expectativas e noites mal dormidas, conheci finalmente um guru. Confesso que fiquei excitado com o facto. Atrevi-me a fazer-lhe uma pergunta, daquelas que só os gurus sabem responder. Tinha esperança de ter uma resposta que me enriquecesse a vidinha, assim num estilo ‘toque de Midas’. Esperei algum tempo e nada. Depois voltei a tentar. Deu-me então, num jeito de campanha eleitoral, alguns momentos da sua atenção. Transpirei nas palmas das mãos e o meu espírito abriu-se em comunhão perfeita com os meus ouvidos, para ouvir sábias palavras. Recebi então palavras, muitas, durante cerca de 10 minutos. Quando ia a meio daquela ode à banalidade, pedi para interromper e perguntei-lhe se era um guru de verdade ou um sósia. Ele confessou-me que o sósia estava no Oriente a palestrar em estrangeiro e que ela era o real. E que ser guru era mesmo isso. Era quase o mesmo que ser Miss Universo. Agradeci esclarecido, e saí a correr, com a promessa de voltar com mais uma pergunta. Daí a 100 anos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Bombista-suicida

Hoje conheci um bombista-suicida. Nunca tinha conhecido nenhum, por isso, fui com cuidado. Mas ao contrário do que eu pensava, este não tinha bombas atadas à cintura, nem nada dessas coisas que os jornalista gostam de descrever com imparcialidade. Tinha enveredado por outra carreira. Gostava de se suicidar em missões contra o tempo. O que se faz em 2 dias, gostava de fazer em apenas 1. Era assim. Estava-lhe no sangue. Diz-se do seu passado que sempre quis tudo em tempo record. Tudo era para ontem. Viveu assim toda a sua curta vida. E quando um dia quis um pouco de tempo para si, o tempo suicidou-se. Com ele.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Sindicalisses

Ontem formei o Sindicato dos Pequenos e Médios criadores de palavras e frases. Falei com agentes da lei, gurus em gestão fonética e doutorados em senso comum e todos foram unânimes: havia esta lacuna no nosso sistema exigenciológico. Já tinham inventado sindicatos para tudo, menos para isto. Já me considerava estar atrás de grupos como os Amantes do Meio-Dia e das Senhoras que nunca-pensaram-que-o-mundo-ia-para-além-do-que-se-conhece. Todos eles e elas já faziam as suas exigência há muito. E eu, nada. Assim, impelido por um sentimento de apicidade, voei para um serviço de notariado, daqueles mais trendy, com marca e tudo. Aconteceu tudo muito depressa. Tão depressa, que pouco depois, estava já promovido a sindicalista. E a um sindicalista não podem faltar palavras. Ora, como eu era criador delas, a coisa prometia. A minha primeira exigência, com direito a discurso público, foi vetar o espaço a palavras ignóbeis e cheias de arrogância. Estas palavras, quase sempre, não deixam as outras crescer. Gostam de ocupar o espaço todo, como se o mundo das palavras, e o outro também, fosse todo delas. Era definitivamente um bom ponto para começar. Logo a seguir, neste meu primeiro dia, tive um almoço de trabalho com um grupo de transportadores de palavras dos jornais diários que se sentiam excluídos. Só levavam as palavras até aos confins do país, mas nunca tinham a palavra. Prometi analisar o caso, com o menor número de palavras possível, porque estas coisas querem-se claras, concretas e concisas. a seguir ao almoço, segui para as portas da Assembleia da República das palavras, para tentar pôr em prática a minha primeira medida, mas não fui bem sucedido. Não havia força de grupo. Também, ainda só tinha mais quatro companheiros de luta que angariei por acaso quando desci a Rua Amália, até São Bento. E foi porque se assustaram e se hipnotizaram com uma das minhas palavras ‘Cuidado’, porque vinha um carro que as parecia atropelar. Então, como dizia, as coisas não correram bem. Nem passei das portas de entrada, onde guardas armados, me dirigiram palavras de ordem ‘Sai daqui!’. Palavras fortes e bastante encorpadas essas. Eu como representante dos Pequenos e Médios criadores, não me aguentei. Eram já palavras de Grandes criadores. E o meu tabuleiro de jogo não era esse. Deixei para outro dia. E os meus companheiros acasísticos de circunstância também. Antes do fim da tarde, quse noite, já estava exausto. Essa coisa dos sindicatos não era para mim. Talvez quando um dia me tornar um Grande criador de palavras. Fica prometinado.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Em estado de choque

Hoje choquei com um Burocrata. De frente. É verdade que ele vinha na sua faixa de rodagem, sem pisar o traço contínuo, nem sequer uma zebra que estava na berma. Muito direito, confiante e com tiques de superioridade. Saímos de nós e tentámos conversar sobre o evento que acabava de acontecer. Ele vestiu o seu colete laranja de burocrata, colocou o triângulo e começou logo ao ataque. Que não, que aquele papel não servia, que tinha que ser outro a dizer a mesma coisa, mas com outras pessoas a dizer. Eu, manifestamente sem grande experiêcia de pelejar com um adversário deste calibre, tentei argumentar com ideias, algumas de princípios de actuação e de bom-senso, mas sem grande sucesso. Acabei derrotado por knock-out logo no primeiro round. Nem cheguei a ver aquelas senhoras com as placas de números a informar o público, do round seguinte. Enquanto árbitro fazia a contagem, ainda me tentei levantar olhando o Burocrata de frente, mas só com os olhos fez-me ir ao tapete, com mais três regras e quatro decretos que tinha ali na manga. Deixei-me cair, enquanto passava pela humilhação pública de não me conseguir levantar e devolver-lhe tudo em dobro. Afinal, também não tenho a pretensão de ser o Universo que, aliás tem essa mania das devoluções. Fui transportado dali para fora por mim próprio, a custo, e agora já a lutar com a minha própria debilidade. Acho que ainda não me perdoei, ter perdido aquele combate.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Cinderela

Se eu fosse a Cinderela tinha-me transformado em Gata Borralheira há cinco minutos atrás. Como não sou, não aconteceu nada. Continuo à espera que uma meia-noite destas me mostre o meu lado B. E quando esse tempo chegar não sei se estou preparado para me conhecer e me descobrir assim tão bem. Talvez prefira estar coberto por uma cortina de meias-verdades que me mostram sempre as mesmas meias-mentiras. Ou talvez não tenha nada para descobrir e apenas descubra que afinal sou exactamente aquilo que se reflecte no espelho. Sem mais nem menos. De uma forma ou de outra, vou tentar não deixar nenhum sapato para trás. Detesto correr descalço.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Fosse porque fosse

Mantive-me à porta durante dias. Abre, fecha, abre, fecha. E eu ali. Por baixo outras como eu. Suplicava que o negro cativante e espesso me penetrasse. Sem dó nem pidedade. Ou então que alguma alma benevolente me levasse embalada nas suas mãos. Talvez até preferisse isso. Levada, embalada. Talvez me tornasse um avião e planasse por cima do mundo até acabar o céu. Ou talvez fosso barco e me afundasse à primeira semi-onda no fundo de um alguidar. Talvez fosse apenas bola: intermitente, incoerente, amachucada. Talvez me atirassem para bem longe daquela porta de impressora onde esperava ansiosa o próximo CTRL+P -> Yes.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Encartar

Natividade Gaiteiro tinha aviado mais um. Já era o terceiro nessa noite. Estava inspirada. Estudava-os, deitava-lhe olhares insinuantes, mirava-lhes os movimentos e, sem dó nem piedade, eram dela. Foi assim a noite toda. Já tinha ganho o dia e, talvez, até a semana. Baixou-se para colocar na bolsa o resultado da última conquista. ‘Tenho de comprar uma mala maior., pensou mostrando intenção de a levantar, mas sem o conseguir. Levantou-se, olhou o espelho, retocou o tom e bateu coma porta da casa-de-banho. Era hora de voltar a atacar. As cartas estavam a sair-lhe de feição, essa noite.

domingo, 27 de setembro de 2009

Um momento de eleição.

Antonieta acordou com a sensação que tinha o poder de escolher. Por isso, mais alegre que a normalidade dos dias que respirava, levantou-se da cama com uma confiança que não se lhe via há muito. Tomou um banho mais demorado que o habitual, relaxou, escolheu uma roupa bem bonita e atirou-se ao pequeno-almoço natural em pedaços, que foi tirando espaçadamente do frigorífico. Sentou-se, olhou pela janela e deixou-se invadir pela luz da manhã. Depois de sorver o último gole de sumo de cenoura, levantou-se e olhou-se no espelho da entrada. Hoje sim, iria poder escolher. Todos iam poder escolher. Pôr ou não uma cruz a marcar uma posição. Sim, iria fazer. Como há quatro anos não o conseguiu. Fechou a porta com força, mas apenas no trinco. Desceu a escada até ao rés-do-chão e voltou a subir até o último andar. Uma pequena porta dava acesso ao terraço que em tantas ocasiões lhe serviu de companhia. Hoje testemunharia a sua escolha. Antes de olhar para baixo, olharia o destino de frente.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Espera

Quando de manhã Filipe acordou percebeu que estava à espera. Esperou algumas horas e nada. Levantou-se, voltou-se a deitar, tornou a levantar-se. Esperou. Olhou em redor e esperou por um sinal. Talvez estivesse enganado e não devesse estar à espera naquele local. Já um pouco irritado perguntou a uma mulher que passava se era ali que se esperava. Ela encolheu os ombros. Filipe avançou mais uns metros e deteve-se na esquina mais próxima. Dali tinha uma visão melhor e de certeza que era o melhor sítio para esperar. E ali ficou mais umas horas. Filipe continuava à espera. Tenho a certeza que era aqui. E nada. Um polícia que, entretanto, parou naquele local disse-lhe que tinha que se afastar que ali não era sítio para se esperar. Afastou-se fugindo ao olhar da autoridade. Afastou-se alguns quarteirões, na esperança de encontrar o melhor sítio para esperar. Parou em frente a uma loja que tinha uma fila de espera. Ainda hoje está lá. À espera.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

À traição

No outro dia tive um caso com a percepção e ela traíu-me.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Cicatrizações


Há duas semanas abri uma cicatriz. Fazia já muitos anos que não abria nenhuma. Passei toda a minha vida a fechá-las. Mas desta vez empenhei-me a fundo a abrir esta. Contratei pessoal habilitado e fechei-me sobre mim próprio. Quando acordei do transe lá estava ela. Bem aberta. Durante alguns dias andou bem fresquinha e com tiques de ‘não me toques!’. Mas eu não lhe dei assim tanta importância, porque mesmo que aberta de propósito, há que fechá-la o quanto antes. Andei de volta dela, tentando convencê-la que o melhor era fechar. ‘Que não, que ainda nem tinha duas semanas de actividade, que ainda não tinha vivido o suficiente.? Queria aspirar ar e levá-lo lá para dentro. Tinha ouvido dizer que o inspirar o ar purificava por dentro. E eu acrescentei, por dentro e por fora. Por isso, deixei-a andar mais uns dias, purificar-se um dia de cada vez. Há quem diga que, por muito que se queira, essa coisa da purificação tem muito que se lhe diga. Eu acho que se diga e que se faça. Porque não acredito em purificações só com palavras. É preciso actos. Por isso, deixei-a enganar-se este tempo todo. É para aprender. Até que ontem disse-me baixinho: ‘olha, fecha-me lá que eu já estou farta deste sítio e também já estou bem purificadinha’. Olhei-a com desprezo e fechei-a. Pelo menos foi isso que eu lhe disse.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Por acaso


Ela passava o dia a captar a alma da cidade. Ele pensava que um dia alguém não ia apagar o que ele ia deixando para trás. Encontraram-se por acaso.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Nada a acrescentar.

Mateo tinha acordado cheio de nada e com uma indomável vontade de fazer coisa nenhuma. Movia-se a nada e para nada. Nada o fazia pensar que o melhor era ter alguma coisa. Mas, nada. Para Mateo nada interessava, nem mesmo ele próprio. Por isso, nesse dia, nada fez. Rigorosamente nada. Quer dizer, respirou fundo e olhou pela janela, onde de vez quando penetravam envergonhados raios de sol. Mas, ficarem para todo o dia, nada. Foram-se ainda quase antes de terem vindo. Mateo ali ficou imóvel. Sem nada sentir, sem nada pedir, sem nada pensar. Esvaziou-se de si próprio e sentou-se, nu, à espera que nada se passasse.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Dia 19 de Agosto – O dia depois de amanhã há mais de uma semana

Tinha chegado o dia que eu achava que era depois de amanhã, pelo menos depois de ter visto Nova Iorque com gelo a apagar a chama da Liberdade. Lá fui. Ora se já era depois de amanhã, já tinha passado. Mas não passou. Num dia depois de amanhã tudo acontece muito lentamente. Cada segundo é vivido como se fosse um minuto. E cada minuto como se fosse uma hora. E por aí fora. Mas nesse dia, acordei muito mais depressa que o costume. E, ao contrário dos outros dias, não comi. Limitei-me a entrar num jejum consciente que me deu cabo do meu equilíbrio psíquico. Depois, lancei-me para o carro armado de malas e bagagens. Iniciei a viagem. Num dia depois de manhã, não se goza cada momento da viagem. Antes se vive intensamente a ansiedade do que ainda não chegou. E imagine-se, se é depois de amanhã já hoje e se ainda se antecipa, é como viver sem gozo, a vida antes de acontecer. Quando se olha pela janela e se vê a paisagem de um dia depois de amanhã, o pássaro que não tem coragem para nos olhar nos olhos ainda lá não está. E nem sei se estará. As palavras que trocamos ainda não se formaram e, como tal, talvez nem signifiquem nada. E como nada significam são vazias e desprovidas de qualquer sentido. Num dia depois de amanhã cria-se uma barreira entre o que é e o que pode vir a ser. A antecipação não significa que as coisas acontecem realmente. Num momento desse dia pedi um passe de mágica que me levasse para outro dia. Pedi mas ninguém me ouviu. Quer dizer, acho que me ouviram, só que ninguém levou a sério o meu pedido. Mas também, é difícil levar a sério um pedido destes: ‘olhe, leve-me para outro dia, quando tiver a tirar o coelho da cartola!’. Não bate certo. Num dia depois de amanhã o que é que realmente bate certo? Tudo e nada. Para meu bem, no meu dia depois de amanhã, que por acaso foi há mais de uma semana, espero que tudo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Céu cor-de-branco-pálido

Deitei-me na cama para poder olhar o céu de frente. Consegui. Quando o céu se olha assim, parece que a essência do Mundo vem ter connosco. Pelo menos comigo. Mas em vez de azul, o meu céu tinha mudado de cor. Estava pálido. Tinha saído de uma manhã de nevoeiro ou de uma pista de bobsleigh - sempre adorei esta palavra e hoje tinha que a escrever em algum lado. No meu céu desse dia não havia sol, nem pássaros, nem uma nuvem para contar história. Mas, estava cheio de grelhas intermináveis de ares condicionados. Alarmes anti-fogo prestes a disparar tsunamis de água doce se alguém quebrava as regras e voltava a comunicar com fumos. Neste meu céu, cheguei a ver estrelas, quando fui invadido por um movimento profissional de ‘eliminação da sensibilidade’. Ainda resisti, mas fui prontamente chamado à razão. Quanto mais sentires, pior para ti. E deixei-me ir. Embalado até não me sentir. Mas com os olhos bem abertos e a ouvir tudo. Saboreei todos os momentos. Fui e vim. Deixei-me frankesteinear. Não gritei, não me mexi, não fiz nada. Apenas ouvi o realizador ao fundo – ‘Corta’. O céu, esse continuou branco por mais uns dias.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Assim

Que cor viste pela manhã? Quantas vidas viveste antes do meio-dia? Que personagens já foste? Quantos litros de felicidade bebeste do ar que respiras? Quantas vezes foste estrela de TV? Que palavras te disseram mais que um livro inteiro? Que cor tinham os olhos que viram três crianças a puxarem os seus papagaios de papel deixando pegadas de alegria na relva molhada? Que tom de bom-dia trocaste com a senhora do café que te perguntou 'com ou sem adoçante'? Quem te prendeu o olhar com um pequeno traço de ingenuidade? Quem disse que 'é assim' quando pensavas que não era? Quem levou a vida a sério quando ela é um parque de diversões, com entrada livre? Quantas horas eram afinal quando a inspiração te bateu à porta de casa e te pediu para entrar? Quantas vezes gritaste para dentro pensando que ninguém te ouvia? Quando descobriste que hoje era o melhor dia para adiar outra vez o que querias realmente fazer? Quem te disse que o melhor ainda está para vir? Quem te disse o contrário? Quem te disse que a verdade está no meio das duas? Quem te disse que sei onde estás? Quem te disse que o caminho para aí é sempre é linear? Quem te deu essa noção de tempo de séculos? Quem te disse que não apareço aí? Quem te disse que não estou aí neste momento? Talvez hoje ainda nem tenha aberto os olhos. Assim.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

El Tesouras

Durante horas, dias, anos, ele não saía do ginásio, apurando a sua forma. Muito sangue, muito suor e lágrimas que chegaram a encher um garrafão de 5L de Luso. Sempre a dar no ferro, ignorou muitas coisas que a vida lhe podia ter proporcionado. Para aliviar o stress mascava pedaços de macedónia congelada. Em countdown, El Tesouras não ouvia nada nem ninguém, apenas aquele som metálico. E num abrir e fechar de olhos, atirou ao seu alvo de sempre. Errou. A barriga da prima do poeta corou. E não foi de vergonha.

Gomes

O Gomes observou de longe e olhou para cima, como se esperasse um sinal. Esperou uns momentos e nada. Precisava urgentemente de um código que o pudesse decifrar. Ouviu em redor, suspirou e declamou em voz bem alta: ‘nunca guardei rebanhos, mas era como se os guardasse, cheguei à linha de fundo e cruzei. Foi autogolo’.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Borges

Pelo sim, pelo não, Borges jogou pelo seguro. olhou em frente, ajeitou os óculos e avançou. Mas, qual não foi o seu espanto, quando pôs os olhos em tal fenómeno até as glândulas salivares, explodiram em todas as direcções. Borges nunca mais foi o mesmo, Viu, ouviu e passou ao lado. É que o olhar em frente e dar de caras com o passado, não é para todos. Pelo sim, pelo não, é melhor fechar os olhos.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Uma nova vista sobre a cidade.

Túlia não aguentava mais. Chegou-se mais perto e olhou para baixo. A cidade não tinha parado para testemunhar aquele momento. Olhou para a esquerda, depois olhou para a direta. Não vinha ninguém que a pudesse impedir. Respirou bem lá no fundo do seu ser e, como que se despedindo do que lhe era caro, quase nada na verdade, deu um passo atrás e fumou um cigarro. Depois outro e mais outro. Voltou a empoleirar-se. Voltou a dar um passo atrás. E outro à frente. Não, ainda não era hoje que dizia adeus à vida. Deu novamente um passo atrás. Em falso. Afinal a cidade tinha parado para a observar. Para nunca mais voltar a vê-la.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dor de olhos.

Só de ver já me dói. Olhei para o lado e fiquei imóvel. Fixei os olhos. Aquilo incomodava-me, mas não conseguia afastar-me. Fiquei horas a tentar que o meu cérebro ordenasse às minhas pernas, de uma forma lógica e racional, que se pusessem a andar dali para fora. Mas não, não consegui mover-me. E se aquilo me doía por dentro. Talvez um dia me encha de coragem e tome um frasco de analgésicos. Já vou poder olhar. E, de certeza que vai doer menos.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Tourada

No outro dia decidi que ia agarrar o touro pelos cornos. Estudei-o ao pormenor, cheguei-me a ele, olhei-o de frente, bem no meio dos olhos. Não se impressionou, devolvendo-me o olhar com desprezo. Afastou-se uns metros e deitou-se à sombra, baixando-se lentamente. Não me intimidei e segui-o. Voltei a olhá-lo nos olhos, erguendo as duas mãos para os agarrar. Ele voltou a desdenhar-me e a baixar a cabeça. Alguém tinha chegado primeiro.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Tango

Água na boca. O teu nome deixou-me água na boca. Olhei-te. Passei-te de lado para que apenas invadíssemos as nossas distâncias. Sorri-te. Toquei-te com os olhos. De frente, de lado, de todos os lados. Talvez me tivesse inspirado Gardel. Soubera eu dançar e convidava-te para um tango, mesmo que música fosse outra. Deslizaríamos por entre a multidão possuída de outras batidas. Atravessávamos a sala, ou a rua, e chegaríamos sãos, salvos e apaixonados ao outro lado. Agora sim, a dança poderia começar. O palco seria nosso, sempre nosso. Perguntar-te-ia o nome. Tu responderias: ’Que importa?’.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Grito mudo

Hoje apetece-me gritar. Já gritei, mas foi para dentro.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Rapidinha

Puxei-lhe os cabelos. Dominei-a. Rasguei-lhe as roupas, uma a uma. Desviei-lhe o cabelo, apenas com o olhar. Depois olhei-a nos olhos e disse-lhe em estrangeiro ‘I love you’. De seguida, e sem pedir permissão, levei-a à Lua sem passar pela casa de partida e sem receber €10. Acabei com aquilo e sentei-me. O sol estava a pôr-se. O jantar estava na mesa. Jantámos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Sal

Diz que conhece Deus por dentro. Vai de quando em quando, de longe em longe. Segue pelo caminho largo que a vida ensinou a trilhar. Ignora as encruzilhadas, como se elas fizessem parte de um destino traçado há momentos. Levanta leves voos rasantes que lhe fazem ver mais de perto. Pirueta por entre os obstáculos da incoerência que reina entre as pedras que se atravessam no seu caminho. Não olha para trás. Detesta sal. Detesta pensar que o que vem de trás dá origem ao que se pode esperar passado um tempo. Leva na bagagem uma mão cheia de ansiedades bacocas que lhe amputam o pensamento. Pára no sinal encarnado. Pára na artéria mais próxima que lhe cobre de paixão um olhar polvilhado pelo medo. Ainda vai longe. Talvez um dia a vida lhe acabe por ensinar que só conhecer Deus pode não chegar. Convém conhecer também os peões que se lhe atravessam no seu lado do passeio.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

hoje

Hoje o dia amanheceu a saber a cerejas.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Vazio

Instalou-se o vazio. Veio assim sem avisar. Onde antes brotavam em catadupa, hoje não há nada. Apenas o princípio de coisa nenhuma. Mas, pelo menos já há um princípio, o que até nem é mau. Mas, mesmo um princípio convém que não seja totalmente vazio. Talvez ter uma intençãozita ou outra. Uma ideiazita ou outra. O vazio está cá. Nada, absolutamente nada. Não há cor, não há palavras, não há nada. Nada de nada. Talvez por isso, o ar seja a coisa mais importante que existe. Onde não há nada, há ar. Embora muita gente ande com ar de alguma coisa, no fundo não é nada. Uma vez vi um homem que dava ares de ser importante. Mas, quando percebi, esses ares não eram nada disso. Era importante na rua dele e, acho que tinha um pouco de importância até ao final da esquina. Mas de resto, era só ar. Estou muito preocupado com o ar e com o vazio. Ainda se respira, mas não se está a preencher o vazio com alguma coisa que realmente tenha interesse. E isso ou se encontra ou então, vive-se uma vida cheia de ar. Também não desgosto de, algumas vezes, estar de barriga para o ar a olhar para ele. Como se o pudesse ver. Nada, portanto. O vazio persegue-me. E eu não fujo dele. Pelo menos, não tenho conseguido nos últimos dias. Mas prometo que ainda o vou encher.

6ª feira 13

Na 6ª feira 13, encontrei-me com a sorte.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Sala de espera - II

Voltei ao escritório. Hoje os olhares eram ainda mais distantes e crivados no soalho. A imitação da Vieira da Silva continuava no mesmo sítio, a olhar-me da mesma maneira. Acho que já me tirou a pinta.'Olha o gajo da garganta irritada.' Deve pensar que sou hipocondríaco. 'Sou isso e muito mais', respondo-lhe olhando-a defrente. 'E tu não passas de uma imitação. Nem sequer és numerada, vales tanto como uma canção dos ABBA, na versão karaoke.' Mas ela não se ficou e disse-me que nunca iria imitar nada perto disso. 'É verdade, mas sabes, o que prefiro mesmo é ser o original.'

domingo, 1 de março de 2009

sala de espera

Numa sala de espera de um consultório médico meio mundo acontece. Mas não um meio mundo qualquer. Meias-vidas cruzam-se, meio-olhares trocam-se, mais ou menos, sem se tocarem. Sintomas silenciosos de doenças existentes, ou não, instalam-se descaradamente na cara. Tomam a identidade de quem as tem. ‘Lembra-se daquela senhora, a da hérnia?’ ‘Ah!, a D. Antonieta!’. Num consultório médico, em primeiro lugar, somos conhecidos pelos nossos sintomas e, depois quem sabe, por algum dos nossos nomes. Eu, por exemplo, já sou conhecido como sendo o tipo das amigdalites salpicadas com pedaços de stress e algumas pitadas de hipocondria. Sim, reconheço que às vezes tenho a mania das doenças. E com grande pena minha, não é só às 2ªs, 4ªs e 6ªs, mas quando menos se espera. E hoje, e também ontem, não esperava, mas apareceu. Toma lá, assim sem avisar. Num consultório médico, o do costume, com as cadeiras do costume, as revistas do costume, a imitação de Vieira da Silva do costume, lá estou esperando a minha vez. O consultório mesmo cheio de gente, está sempre vazio. Falta-lhe um pouco de vida. Mas também, se ela estivesse totalmente saudável, quem precisaria de aqui estar? Um dia sonhei que nunca ficava doente e que todas as pessoas que eu conhecia também não. E as que não conhecia, igualmente. Os médicos ficaram sem trabalho e tinham-se dedicado às letras, com muito sucesso. O mundo tornava-se um lugar em que as doenças tinham dado lugar às palavras. Os médicos, antes preocupados com a saúde das pessoas, dedicavam-se agora à saúde das letras e das palavras. Em todas as esquinas deste novo mundo se viam médico, felizes, ainda com as suas batas brancas, a dizerem textos em voz alta. Não importava se relembravam os clássicos, os modernos, os mais ou menos ou os desconhecidos, qualquer um era pretexto para se juntarem mais algumas vozes e palavras. As doenças, essas não conseguiram resistir e perderam-se para sempre. Mas, como tudo o que é bom acaba depressa, até elas hão-de voltar. Seja quando eu acordar, seja quando voltar à sala de espera do meu médico. Mas, até lá, vou aproveitar ao máximo cada palavra.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

hipnose express

Acabei de ser hipnotizado pela palavra escrever.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Esquemas

No outro dia conheci um esquema. Não era daqueles muito complicados. Confessou-me que estava cansado de ser esquema, porque num esquema nunca nada é o que parece. E ele estava farto daquele esquema. Isto de ser um esquema de dois vigaristas baratos é um sufoco. Nunca se dorme tranquilo. Cada dia à espera de ser apenas mais um esquema que se põe a descoberto. Já imaginaram o que é dormir todos os dias sem a certeza que a coisa corre bem no dia a seguir? Dramático. E há também que sustentar a família e com o ordenado que tem hoje é andar sempre a fazer contas. Incerto. E educar pequenos esquemas, cada vez a exigirem mais, não é pêra doce. Um esforço hercúleo. Isto para não falar na vergonha que passa se outros esquemas, bem mais discretos e talvez mais inteligentes, descobrem que foi descoberto. Ainda se fosse um daqueles esquemas que, já só reformados e inimputáveis, parece que se descobrem. ‘Ah, parece que havia para aí uns esquemas...’, mas nunca ninguém aparece a querer falar muito no assunto. Isso sim, é um esquema de classe A. Ou daqueles tipo Madoff que parece que estão ao lado do esquema da autoridade, mas na realidade já a enrolaram por todos os lados. E no fim, ainda fica para a História como um esquema inteligente, sofisticado e muito à frente do seu tempo. Ser um esquema descoberto, mas destes, isso sim. Até vale a pena. Por isso, o esquema que conheci no outro dia é um esquema triste hoje em dia. Não consegue evoluir. No início da sua carreira esquemística era uma jovem promessa deste campeonato. Chegou a ganhar alguns prémios e a receber propostas para ir actuar noutros campeonatos mais competitivos. Mas, por amor à terra e por alguma falta de confiança própria da idade, acabou por rejeitar. 'Ah! não entro em esquemas esquisitos!’ Hoje arrepende-se. Mas acredita que a sua oportunidade ainda vai chegar. Na semana passada, ainda acreditou que era desta quando se chegaram perto dele e lhe perguntaram as horas. ‘Tem horas?’ ‘Sim, são 7 e meia’. Esta era a resposta típica de um esquema que está disposto a sair e encontrar novos desafios. Mas, afinal era mesmo uma pessoa que se tinha esquecido do relógio.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Tudo está bem, quando acaba como já devia ter acabado.

Já era a segunda vez hoje. E a primeira tinha-me deixado uma sensação de mau estar que não consegui digerir nos segundos a seguir. O rapaz, dos seus 20 anos, olhar ausente e odor de quem não se inundava de água tépida, há pelo menos uma semana, ergueu de frente para os meus olhos um folha, com um pequeno texto. Escrito a custo, via-se pela caligrafia muito incerta e, aqui e ali, com falta de força, a mensagem era clara: ‘Ajuda-me por favor. Um pão basta.’ É verdade, não me pediu dinheiro, coisa que aliás detesto, mas apenas um pedaço, mesmo que esquecido, da comida mais elementar e básica dos nossos dias. Farinha e água. E eu não parei, nem o olhei de frente. O jogo de ‘olhos nos olhos’ desgasta-me sempre. Perco sempre no último momento e acabo por ceder. Mas, desta vez nem cedi, nem parei, nem perdi. Mas, nem cinco passos adiante, fui atropelado. Ainda hoje estou para saber, por quê, por quem. Num sotaque da Beira, uma velhota, sim o termo é este, pediu-me uma sandes. E como que se penitencia de algo feito no passado, não lhe ofereci nenhuma sandes. Num acesso instintivo perguntei-lhe? ‘A senhora quer almoçar comigo?’, num tom claro e definitivamente muito frontal. A velhota, talvez já tivesse ultrapassado os 70 anos, olhou para mim como se não me tivesse entendido bem. Talvez pela surpresa de, pela primeira vez em algum tempo, alguém tivesse reparado nela e a tivesse tratado como um pessoa que era. Mas, antes que eu pudesse arrepender-me do convite ela respondeu um ‘sim’ que ainda hoje não me sai da cabeça. Subimos a rua lado a lado, como avó e neto. Não trocámos palavras, mas também não me importava. Precisava realmente de alguém que caminhasse comigo aqueles metros. Entrámos no café e, como que num movimento colectivo e coordenado como um movimento de ginástica colectiva, fez-se silêncio e todos nos olharam. ‘Mesa para dois, por favor’, pedi ao empregado mais perto. Um pouco a custo e com alguma má vontade, indicaram-me a mesa mais ao fundo, a mais sombria. Uma pequena ilha para o isolamento do resto daquele mundo. Sentámo-nos. Tirei o casaco e coloquei-o nas costas da cadeira. Até a cadeira, de uma madeira já gasta, destoava do resto da sala. A velhota sentou-se também, ajeitando o lenço que tinha na cabeça. Peguei na ementa e li-lhe os pratos do dia em voz alta, num acesso de preconceito do analfabetismo da minha convidada. Ela escolheu, sem surpresas, uma sopa, ‘quente, por favor, que o frio até me come os ossos.’ ‘E a seguir?’, perguntei-lhe. ‘Pode ser um arroz com carne que vi ali atrás.’ Tentei entabular uma conversa, tendo recebido alguns sins e nãos alternados e mecânicos.

- Sabe, hoje ia almoçar com alguém - disse-lhe em jeito de confissão
- Sim? E porque é que o menino não foi? - respondeu-me desinteressadamente.
Também me pergunto
Pergunta o quê?
Pergunto-me se devia ter ido ou não
E quem é que vai saber senão o menino?
Pois
Pois, não. O menino ainda é muito novo para estar com essas coisas.
Quais coisas?
Essas coisas de saber se vai ou não vai.
Mas eu estava a ir e ao mesmo tempo a não ir.
Então devia ter ido.
Mas se fosse acabava tudo. E talvez me arrependesse a seguir.
Acabava tudo o quê?
O que comecei há uns anos e consegui manter.
Mas agora está arrependido de não ter ido.
Estou.
Então o que faz aqui com uma velhota como eu?
Almoço.
Eu também.
E a senhora?
O que é que tem?
Quem é?
Sou uma velhota. Alzira. Alzira da Silva.
D. Alzira porque veio comigo?
Tinha fome. E ainda tenho um bocadinho que só a sopa não chega.
Já vem o resto, não se preocupe.
Sim, está bem. Sabe menino já fui muito rica.
Ai sim?
Sim. Mas agora já não sou. Emigrei.
Mas sempre viveu em Portugal, D. Alzira?
Não menino, em Portugal não, eu sou da Beira Baixa.

Pedi um café para mim e uma tarte para a D. Alzira. Acompanhei-a à porta. Ela deu-me um beijo e subiu a rua. Eu desci e fui acabar com a minha namorada.

chocochoc

Não comi chocolate. Mas se tivesse comido acho que me ia saber a uma noite bem dormida, coisa rara nos tempos que correm. Talvez amanhã volte a comer um pedaço. Talvez amanhã a noite bem dormida chegue. É 6ª feira. Talvez façam os dois uma corrida para ver quem chega primeiro ao fim da rua. Gosto de pensar que a vida é uma rua que se deixa interceptar por muitas outras. E sonho perder a prioridade nessa rua e deixar que milhares de sensações se atravessem à minha frente, vindas da direita. Se calhar, o melhor é comer mesmo o chocolate, porque desta vez não me vai saber a noite. Desta vez, vai saber apenas a chocolate.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Infidelidades

Qual é a palavra que mais gosto? Não sei. Sou completamente infiel. Neste momento tenho um caso com pelo menos umas mil ao mesmo tempo. E amanhã, com outras mil. Depois, logo se vê.

O dia dos namorados

Se alguém detestar tanto o dias dos namorados tanto como que detesto, por favor acuse-se. Detesto o dia dos namorados, já devem ter percebido. Detesto-o tanto como café com açúcar. O café quando se junta com o açúcar fica sem personalidade. Parece que levou um lifting para agradar não sei bem a quem. Agarra-se por todos os meios, primeiro à língua, depois pela garganta, até encontrar o estômago. E aí já não ter qualquer hipótese de voltar a ser café puro. O dia dos namorados parece café com açúcar. Risadinhas parvas, abraços escondidos quando abre a porta do elevador, cruzando olhares ainda mais parvos com quem tenta entrar, flores ridículas que passam de mão em mão, menus especiais (há o menu docinho, o menu Valentim – em letra maiúscula por respeito ao Santo, o menu do amor, o menu dos 5 sentidos, o menu para dois – ou para três, dependendo do grau de instrução e de abertura de mente do casalinho, o menu pôr-do-sol, o menu Ao Luar, o menu enfim sós, o menu heart attack, o menu honey bunnie, o menu my darling, o menu I wanna be kissed by you, enfim...).
Especialmente este dia dos namorados foi-me particularmente penoso. Até uma flor, sem culpa nenhuma, me veio parar à mão, como se eu tivesse a obrigação de a ter comprado e oferecido a alguém. Neste dia tudo tem um ar meloso que parece estar ali por acaso. Como se nos outros dias esse ar possa estar completamente alheado e ninguém acha estranho. Discutir, estalar a namorada ou namorado num dia qualquer tudo bem, desde que a 14 de Fevereiro ande toda a gente aos xoxos e em jantares pseudo-românticos, com velinhas e tudo. Detesto o dia dos namorados e nem sequer tem a ver com visões mercantilistas. Detesto-o porque tudo me soa a falso e sem a mínima graça. Para além de que já não se suportam tantos corações voadores que aterram em montras totalmente desesperadas esperando que algum rapazinho ou rapariguinha repare nelas. Bem, já disse que detesto o dia dos namorados, mas ainda consigo detestar mais um risotto que cozeu demais.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Aspirações - cap.I

Hoje acordei e pensei que era um aspirador. Só me apetecia aspirar tudo o que estava à minha volta. Mas no fundo não queria aspirar uma coisa qualquer. ‘Hoje vou aspirar tudo o que está a mais no mundo.’, pensei. Mas, pelo caminho não resisti a um pequeno e insignificante grão de pó que teimava em permanecer imóvel na minha mesa de cabeceira, mesmo no ponto de intercepção onde fazia o seu ângulo recto. Não esperei mais e, de uma vez, aspirei-o. Adeus insignificância de pó. Menos uma coisa a mais neste mundo. A seguir, levantei-me lentamente, como quem tem toneladas de chumbo a povoarem as frontes, pois a noite anterior não tinha sido coisa fácil. Nessa altura pensava que era um telefone, mas isso é outra história.

Já sentado na cama, olhei em frente e, pelas frestas da janela, consegui ver um pouco do sol que cobria este dia estranhamente especial. Aproximei-me da janela, afastando um cortinado velho e pesado que tinha herdado do inquilino anterior, um senhor de alguma idade que, tal como eu, apreciava a solidão. Mas apreciava-a de tal forma que passou vários meses encarcerado nele mesmo. Num belo, dia, resolveu ir à rua e, como já não estava habituado a tamanha aventura, esbarrou de frente com um eléctrico. Parece que ficou ali estendido no meio dos carris, com os dois olhos muito abertos, à espera que alguém os fosse fechar. O eléctrico, esse continuou na linha, depois de um retoque na grelha e uma demão de amarelo.

O cortinado velho e pesado, bem que eu o podia aspirar, porque me estava a impedir de ver melhor o sol desse dia. Mas, como não tinha comido ainda, ia ser difícil puxá-lo todo para dentro. Um aspirador não é uma piton. Por isso, primeiro para a esquerda e depois para a direita, arrastei-o a grande custo. Logo aí o Sol invadiu-me de alto a baixo. Tapei a cara, um pouco por vergonha, perante tal invasão. ‘Se fosses um daqueles políticos reles que ganham a vida a vender promessas, bem que te aspirava de uma vez’. E não custava nada, porque um político desses, bem escorrido, não me enchia nem meio depósito. Mas, como era o Sol não o podia aspirar porque fazia falta a este mundo. E se este mundo já tem noite que chegue. Quando me consegui pôr de lado, e ficar apenas com a invasão a meio, reparei em algo que, definitivamente, queria, devia e ia aspirar, nem que tivesse que mudar o saco a meio.

Fixei-me nele.

febre abaixo dos 37º

Hoje acho que tenho febre de viver com mais intensidade. Se calhar vou esperar que a temperatura venha abaixo dos 37º. Ou talvez não.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

o céu da boca

Conheci-te e deixaste-me com água no céu da boca.