quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dia sim

Anibal conduzia aquele carro há já vários anos. E aquilo nem lhe fazia grande confusão. Levar, trazer. Olhar o espelho, ajeitar a gravata. O mesmo ritual. Abrir a porta, carregar, fechar a porta, carregar. Mas naquele dia, já com o carro em andamento sentia-se desconfortável. Não sabia bem porquê. Olhou-se ao espelho. Tudo normal. Olhou para os lados, nada. Parou o carro e dirigiu-se à traseira. Abriu vigorosamente a porta e olhou-o de frente. ‘Há anos que ando contigo de um lado para o outro e nunca houve confusões. O que é que se passa?’ Uns segundos e nada. Até que ouviu um ligeiro som vindo lá de dentro, como que pedindo para sair. ‘Mau, temos festa!’, pensou. Era a primeira vez que passava por aquilo. Agora é que se lembrava de querer sair, mesmo antes de chegar a casa. E nós que tínhamos um acordo, bem selado, há anos atrás. Nem eu fazia perguntas, nem ela me dava respostas. O som tornava-se mais aflitivo, à medida que passavam os segundos. Anibal começou a suar. Tirou o casaco e desmanchou o nó gravata preta. ‘Abro...., não abro.’ O som era cada vez mais estridente e aquilo começava a mexer-se mesmo. Esfregou os olhos e beliscou-se. Sim, era verdade. Chegou-se mais perto e, com uma mão numa das pegas, arrastou a tampa. Lá dentro nada, absolutamente nada. Hoje, aquele espaço era todo seu. E o dia também.

domingo, 10 de outubro de 2010

10-10-10

Passavam já dez minutos das dez quando ele chegou à porta. Estava outra vez dez minutos atrasado. Hesitou em tocar à campainha. Era já a décima vez que o fazia neste mês de Outubro. Por muito que tentasse não conseguia. Já tinha tentado adiantar esses dez minutos, mas fosse por que caminho fosse, arranjava sempre maneira de os perder. Andava a pensar em adiantar vinte, mas isso só daqui a dez anos. Tocou e esperou a resposta. Nada. Voltou a tocar. À décima vez desistiu. Sentou-se no chão da entrada, naquela pedra que gelava dez vezes mais que o frio que se entranhava no corpo. Ao fundo ouvia as badaladas da torre: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,...Esperou e nada. Tinha chegado uma hora mais cedo. Olhou de novo o relógio e acertou os ponteiros. Sorriu.