quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Em estado de choque

Hoje choquei com um Burocrata. De frente. É verdade que ele vinha na sua faixa de rodagem, sem pisar o traço contínuo, nem sequer uma zebra que estava na berma. Muito direito, confiante e com tiques de superioridade. Saímos de nós e tentámos conversar sobre o evento que acabava de acontecer. Ele vestiu o seu colete laranja de burocrata, colocou o triângulo e começou logo ao ataque. Que não, que aquele papel não servia, que tinha que ser outro a dizer a mesma coisa, mas com outras pessoas a dizer. Eu, manifestamente sem grande experiêcia de pelejar com um adversário deste calibre, tentei argumentar com ideias, algumas de princípios de actuação e de bom-senso, mas sem grande sucesso. Acabei derrotado por knock-out logo no primeiro round. Nem cheguei a ver aquelas senhoras com as placas de números a informar o público, do round seguinte. Enquanto árbitro fazia a contagem, ainda me tentei levantar olhando o Burocrata de frente, mas só com os olhos fez-me ir ao tapete, com mais três regras e quatro decretos que tinha ali na manga. Deixei-me cair, enquanto passava pela humilhação pública de não me conseguir levantar e devolver-lhe tudo em dobro. Afinal, também não tenho a pretensão de ser o Universo que, aliás tem essa mania das devoluções. Fui transportado dali para fora por mim próprio, a custo, e agora já a lutar com a minha própria debilidade. Acho que ainda não me perdoei, ter perdido aquele combate.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Cinderela

Se eu fosse a Cinderela tinha-me transformado em Gata Borralheira há cinco minutos atrás. Como não sou, não aconteceu nada. Continuo à espera que uma meia-noite destas me mostre o meu lado B. E quando esse tempo chegar não sei se estou preparado para me conhecer e me descobrir assim tão bem. Talvez prefira estar coberto por uma cortina de meias-verdades que me mostram sempre as mesmas meias-mentiras. Ou talvez não tenha nada para descobrir e apenas descubra que afinal sou exactamente aquilo que se reflecte no espelho. Sem mais nem menos. De uma forma ou de outra, vou tentar não deixar nenhum sapato para trás. Detesto correr descalço.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Fosse porque fosse

Mantive-me à porta durante dias. Abre, fecha, abre, fecha. E eu ali. Por baixo outras como eu. Suplicava que o negro cativante e espesso me penetrasse. Sem dó nem pidedade. Ou então que alguma alma benevolente me levasse embalada nas suas mãos. Talvez até preferisse isso. Levada, embalada. Talvez me tornasse um avião e planasse por cima do mundo até acabar o céu. Ou talvez fosso barco e me afundasse à primeira semi-onda no fundo de um alguidar. Talvez fosse apenas bola: intermitente, incoerente, amachucada. Talvez me atirassem para bem longe daquela porta de impressora onde esperava ansiosa o próximo CTRL+P -> Yes.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Encartar

Natividade Gaiteiro tinha aviado mais um. Já era o terceiro nessa noite. Estava inspirada. Estudava-os, deitava-lhe olhares insinuantes, mirava-lhes os movimentos e, sem dó nem piedade, eram dela. Foi assim a noite toda. Já tinha ganho o dia e, talvez, até a semana. Baixou-se para colocar na bolsa o resultado da última conquista. ‘Tenho de comprar uma mala maior., pensou mostrando intenção de a levantar, mas sem o conseguir. Levantou-se, olhou o espelho, retocou o tom e bateu coma porta da casa-de-banho. Era hora de voltar a atacar. As cartas estavam a sair-lhe de feição, essa noite.