segunda-feira, 11 de julho de 2011

Histórias do Norte – Cap:2 - She (não, não é a do Elvis Costello)

Ela olhava para cima em busca de um ponto que lhe desse a segurança que precisava para aquele passo. Os olhos grandes, de um castanho escuro mate, davam-lhe um encanto especial. Mas ao mesmo tempo, mostravam um pouco da ansiedade que envolvia levantar os pés da terra. Muito quieta, acabava por resignar-se ao seu destino. Apenas os olhos a denunciavam. Os seus longos cabelos, sem uma única onda, desciam-lhe calmamente pelos ombros, desenhando uma cascata quase perfeita. O medo que se estampava no seu rosto era arredondado pela inocência que parecia ainda ter. Não tive coragem de lhe perguntar o nome logo quando reparei que a sua face me fazia olhar uma e outra vez, até perder a conta. Reparei nela ainda em terra, mas a caminho das núvens. Mas foi em Santarém, bem por cima do vale de Almeida Garret, que marcou a atmosfera. Uma pose mais decidida. Um deslumbramento mais terreno. Ainda faltam 2.500 quilómetros para chegar. Tenho a certeza que irá ainda revelar-se. O seu ar tem algo de islâmico. E isso atrai-me. Esse desconhecido que faz pensar tudo duas vezes antes de dar um passo, por mais pequeno que seja. Um desconhecido que talvez se esconda por trás dos seus longos cabelos ou mesmo dos seus olhos castanhos escuro mate. Um desconhecido que sei que não vou descobrir, mas posso imaginar. Pedaço a pedaço. Lá fora, em Santarém, estão 13º negativos, mas isso não me faz arrefecer o coração. Percebi pelo título do livro que lia, vagarosa e com uma vontade intermitente, que falava português. A minha língua, que afinal era nossa. Pelo menos talvez nos consigamos entender nas palavras. Ela deve ser muito nova. Já hipnotizado pelo tapete rolante das malas, ganhei coragem e perguntei-lhe. ‘Sylvia. Eu sou a Sylvia!’ Antes disso, atrevi-me a adivinhar todos os nomes, menos esse. E muito menos com um ‘Y’ para me impedir de acertar. Se não me tivesse dito que estudava posologias e receitas, esse seria, por certo, a última coisa em que pensaria que investia a saúde dos seus neurónios. Talvez algo mais livre, mais libertador, mais aberto. Mas isso não é o mais importante. Porque hoje ela traz na bagagem, no meio de sonhos e incertezas, 36 dias para ser o que quiser. Para travestir esta cidade com o seu sotaque encantador. Longe do sol e do sangue-quente. Longe de uma alegria que nunca se põe no final de cada dia. Longe da espontaneidade e leveza com que se atravessam os dias no outro lado do Atlântico. Mas, quem sabe se não é ela quem os vai trazer para cá?

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