domingo, 22 de maio de 2011

Fogo-d´água

Água, Miguel precisava desesperadamente de água. Todo ele se sentia seco, incluindo mesmo a parte de trás do coração. Tinha chorado tudo nos últimos dias. E, no final de contas, não era um camelo, no sentido literal, para conseguir armazenar água para vários dias. Mas, em todos os outros sentidos, era assim que se sentia. Ainda pensou que se adicionasse um ‘T’ à sua condição miserável, ainda podia e ia, com certeza, mudar o rumo da história. Assim, sempre seria uma história redonda como a távola e gloriosa como a vitória de amor verdadeiro. Mas, mesmo com o sinal verde a cair, não o conseguia. A história era aquela e mais nenhuma. Por mais que insistisse, nada. Era assim. Por isso, mesmo a medo, Miguel ganhou finalmente coragem e iniciou timidamente, mas num tom definitivo, a sua marcha, rumo ao outro lado da rua. Sim, eram tímidos e sentidamente tremidos. A puta daquela imagem não lhe saía da cabeça. ‘Miguel há só um, e esse sou eu.’ Miguel tinha-se tornado ao longo dos últimos tempos um ser desatento. Nunca havia percebido que um Miguel tem de estar sempre alerta e que ajudava ter feito o seviço militar nos Comandos. Como isso não aconteceu, desatentou-se. E era agora, passados alguns poucos anos, que factura vinha servida sob a forma do inesperado e do inacreditável. A puta daquela imagem continuava a não sair dali, parecia instalada, sem pedir permissão, bem nos lobos frontais da cabeça de Miguel. Se é que ele, neste momento ainda a conseguisse possuir. Fazer zapping cerebral parecia-lhe uma coisa acertada fazer naquele momento. Não estava a conseguir. Pensou ‘Vou apagar’. Mas,Miguel sabia que há coisas que não se apagam, têm mesmo de ser queimadas. O problema é que ele não fumava. Não havia lá em casa, nem um pequeno isqueiro ou caixa de fósforos. Não tinha, mas havia maneira de o arranjar. Porque no fundo no fundo, é possível que ainda se venha a queimar, nem que seja com um copo de água quente.

8 comentários:

T disse...

A história era aquela e mais nenhuma. Aquela história era aquela história. E será sempre aquela história. O que o Miguel não consegue decidir é se quer deixar de ler aquela história. De viver aquela história. Apesar do sinal verde aberto, apesar de se sentir seco e esgotado. Apesar de saber que tem de avançar. O Miguel não quer perder o que pensa que ainda tem. Mesmo que seja nada. Mesmo que seja mau. Mesmo que não o deixe avançar. Mesmo que o deixe seco. O Miguel tem medo de deixar para trás. Mas quando decide avançar o Miguel não olha para trás. Mas não olha para trás porque a história ainda vai com ele. Espera conseguir largá-la a meio caminho.

T disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
T disse...

Nunca havia percebido que um Miguel tem de estar sempre alerta. Ainda que nunca vá conseguir estar sempre alerta. O Miguel está convencido que se estivesse alerta não estaria seco agora. Não estaria a tentar avançar. Está convencido disso. Que avançaria. Ou que não haveria porquê avançar. Que não estaria seco tem ele quase certeza. E por isso da próxima vez não vai esquecer-se de não se desatentar. Vai fazer por isso. Tentar com todas as suas forças. Ainda que um bocadinho dele lhe diga que vai ser difícil. Que nestas alturas ele se desatenta. Porque se não se desatentar também não tem piada nenhuma.

T disse...

Rumo ao outro lado da rua. Rumo a outra história. O Miguel sabe que tem de ir começar outra história. Mesmo que a outra história não seja história nenhuma. Mesmo que seja 1 textinho, 1 paragrafo ou 2 frases. O Miguel sabe que está na altura. Mas o Miguel não consegue ter na cabeça duas histórias ao mesmo tempo, nem que uma delas seja apenas 2 frases.

T disse...

Miguel só há um e esse sou eu. Mas e eu posso ser tanta coisa. O pior é que o Miguel não sabe muito bem o que escolher ser agora. Porque agora lhe parece que não é nada. Agora lhe parece que o vazio veio para ficar.

T disse...

Miguel sabia que há coisas que não se apagam, que tem de ser queimadas. Pensava o Miguel que sabia. Mas depois essas coisas serão para sempre lembradas como coisas queimadas. E isso o Miguel não quer. Porque a imagem vai ser ainda mais intensa. Mais dolorosa. O que o Miguel ainda não sabe é que tem de transformar a imagem e absorve-la. Torna-la parte dele. Como um braço ou uma perna que utilizamos para caminhar. Aquelas histórias. Que o fazem seco. Que o fazem dizer palavrões. Que o fazem avançar com medo. São essas histórias que vão determinar o avançar do Miguel. São essas histórias que o vão fazer o que é. O que será. Atento ou desatento. Sem estas histórias o Miguel não seria o que é. E por isso o Miguel vai perceber que estas imagens têm de ficar. Guardadas. Mas ficar.

Pena Frenética disse...

Contigo, o Miguel não pára, não tem descanso. Obrigado pelo ping-pong:)

T disse...

Pede desculpa ao Miguel mas tinhas demasiadas pontas soltas para pegar.
E sim, gosto sempre de meter a minha colherada:)