sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Tudo está bem, quando acaba como já devia ter acabado.

Já era a segunda vez hoje. E a primeira tinha-me deixado uma sensação de mau estar que não consegui digerir nos segundos a seguir. O rapaz, dos seus 20 anos, olhar ausente e odor de quem não se inundava de água tépida, há pelo menos uma semana, ergueu de frente para os meus olhos um folha, com um pequeno texto. Escrito a custo, via-se pela caligrafia muito incerta e, aqui e ali, com falta de força, a mensagem era clara: ‘Ajuda-me por favor. Um pão basta.’ É verdade, não me pediu dinheiro, coisa que aliás detesto, mas apenas um pedaço, mesmo que esquecido, da comida mais elementar e básica dos nossos dias. Farinha e água. E eu não parei, nem o olhei de frente. O jogo de ‘olhos nos olhos’ desgasta-me sempre. Perco sempre no último momento e acabo por ceder. Mas, desta vez nem cedi, nem parei, nem perdi. Mas, nem cinco passos adiante, fui atropelado. Ainda hoje estou para saber, por quê, por quem. Num sotaque da Beira, uma velhota, sim o termo é este, pediu-me uma sandes. E como que se penitencia de algo feito no passado, não lhe ofereci nenhuma sandes. Num acesso instintivo perguntei-lhe? ‘A senhora quer almoçar comigo?’, num tom claro e definitivamente muito frontal. A velhota, talvez já tivesse ultrapassado os 70 anos, olhou para mim como se não me tivesse entendido bem. Talvez pela surpresa de, pela primeira vez em algum tempo, alguém tivesse reparado nela e a tivesse tratado como um pessoa que era. Mas, antes que eu pudesse arrepender-me do convite ela respondeu um ‘sim’ que ainda hoje não me sai da cabeça. Subimos a rua lado a lado, como avó e neto. Não trocámos palavras, mas também não me importava. Precisava realmente de alguém que caminhasse comigo aqueles metros. Entrámos no café e, como que num movimento colectivo e coordenado como um movimento de ginástica colectiva, fez-se silêncio e todos nos olharam. ‘Mesa para dois, por favor’, pedi ao empregado mais perto. Um pouco a custo e com alguma má vontade, indicaram-me a mesa mais ao fundo, a mais sombria. Uma pequena ilha para o isolamento do resto daquele mundo. Sentámo-nos. Tirei o casaco e coloquei-o nas costas da cadeira. Até a cadeira, de uma madeira já gasta, destoava do resto da sala. A velhota sentou-se também, ajeitando o lenço que tinha na cabeça. Peguei na ementa e li-lhe os pratos do dia em voz alta, num acesso de preconceito do analfabetismo da minha convidada. Ela escolheu, sem surpresas, uma sopa, ‘quente, por favor, que o frio até me come os ossos.’ ‘E a seguir?’, perguntei-lhe. ‘Pode ser um arroz com carne que vi ali atrás.’ Tentei entabular uma conversa, tendo recebido alguns sins e nãos alternados e mecânicos.

- Sabe, hoje ia almoçar com alguém - disse-lhe em jeito de confissão
- Sim? E porque é que o menino não foi? - respondeu-me desinteressadamente.
Também me pergunto
Pergunta o quê?
Pergunto-me se devia ter ido ou não
E quem é que vai saber senão o menino?
Pois
Pois, não. O menino ainda é muito novo para estar com essas coisas.
Quais coisas?
Essas coisas de saber se vai ou não vai.
Mas eu estava a ir e ao mesmo tempo a não ir.
Então devia ter ido.
Mas se fosse acabava tudo. E talvez me arrependesse a seguir.
Acabava tudo o quê?
O que comecei há uns anos e consegui manter.
Mas agora está arrependido de não ter ido.
Estou.
Então o que faz aqui com uma velhota como eu?
Almoço.
Eu também.
E a senhora?
O que é que tem?
Quem é?
Sou uma velhota. Alzira. Alzira da Silva.
D. Alzira porque veio comigo?
Tinha fome. E ainda tenho um bocadinho que só a sopa não chega.
Já vem o resto, não se preocupe.
Sim, está bem. Sabe menino já fui muito rica.
Ai sim?
Sim. Mas agora já não sou. Emigrei.
Mas sempre viveu em Portugal, D. Alzira?
Não menino, em Portugal não, eu sou da Beira Baixa.

Pedi um café para mim e uma tarte para a D. Alzira. Acompanhei-a à porta. Ela deu-me um beijo e subiu a rua. Eu desci e fui acabar com a minha namorada.

1 comentário:

Anónimo disse...

Deliciosa :)Espero que inspire outras pessoas tb :) Bjs Alice