domingo, 31 de julho de 2011

Re-Evoluções

Filipe estava deitado ao sol a pensar na vida. Mesmo de olhos fechados estava inquieto, perdido. E quanto mais pensava, mais inquieto ficava. ‘Pára de pensar’, dizia a si próprio. Mas não conseguia, era impossível. Deixou-se, então, embalar pelo som das ondas e imaginou mil sinfonias atlântidas que o seduziam, cada vez mais, para a profundidade de um sono condenado ao fracasso. Entre vigílias e ondas profundas, sentia, com o intervalo de alguns segundos, a brisa a bater-lhe na cara. Sabia bem. Por isso, detestou ser acordado por um daqueles papéis que viajam pelo ar à boleia do vento e que lhe aterrou bem no meio dos olhos, começando a fazer-lhe cócegas no entroncamento entre as sobracelhas e o nariz. Levantou lentamente o braço e retirou o papel. Teria ido directamente para o caixote azul, se algumas palavras não lhe tivessem chamado a atenção. ‘REVOLUCIONÁRIOS PRECISAM-SE. ENTRE A VENEZUELA E A COLÔMBIA. NÃO É NECESSÁRIA EXPERIÊNCIA. LIGUE 808666999’. Naquele momento, tudo parou na cabeça de Filipe. Uma revolução vinha mesmo a calhar. De preferência uma por dia. Olhou o telemóvel e não hesitou. Comprou on-line um bilhete só de ida para aquele país entre a Venezuela e a Colômbia. Com escala em Frankfurt. Voltou-lhe a alegria e energia perdidas nos últimos dois anos. Aterrou, deixou as malas no hotel e correu para a entrevista. Fizeram-lhe perguntas atrás de perguntas, descreveram-lhe novas ideologias, mostraram-lhe novas visões do mundo, arredores e outros territórios adjacentes. Filipe acenou a cabeça em concordância. Vestiu novas roupas e ganhou novos amigos. Muitos mesmo, sem saber o nome de todos eles. Tinha o resto do dia de folga. A revolução começava pela manhã. Sentou-se na chaise longue de plástico da esplanada e pediu um café, apesar do calor abrasador e tropical. A cafeína actuou durante alguns segundos, mas Filipe adormeceu fatigado pelo síndrome transatlântico. Sonhou com revoluções e soldadinhos de chumbo. A brisa do final da tarde começava a bater-lhe na face. Sabia-lhe bem. Um papel que voava à boleia dessa brisa bateu-lhe na cara. Filipe acordou. Pegou no telefone e perguntou-lhe: ‘Queres começar uma revolução comigo?’. E viveram felizes para sempre. Uns dias mais felizes que outros.

Em paralelo

As paralelas juntavam-se no final. O número, ímpar. Três. Olhavam em frente sem definir um foco. Por baixo deles, brilho. Um brilho dissimulado que se reflectia nos seus pés. Os deuses são assim. Gostam que todo o brilhos dos homens nunca ultrapasse os seus pés. Perfeitos, paralelos, incrivelmente paralelos, tocando-se no fim. Talvez quando se tocam deixem de ser deuses. E consigam espreitar pela pequenas escotilhas da alma as verdadeiras realidades. Nunca consegui perceber se são os homens que querem ser deuses, ou se serão os deuses que quererão, em alguns momentos, ser apenas homens. Quem quererá viver para sempre? Não sei. E o contrário também não. Talvez apenas ache que todos temos um tempo para provar que merecemos passar por cá. A caminho de onde, também não sei, nem sei se isso me interessa muito. No fundo, não sou nenhum deus. E mesmo que fosse odiava saber tudo. Os deuses sabem sempre tudo. É que saber tudo é o tal meio-caminho andado para não se saber mais nada. E homem que é homem quer saber sempre mais um bocadinho. Afinal, o saber, ou lá como lhe chamam os homens, não ocupa nenhum lugar. Já para os deuses o conhecimento simplesmente existe neles. É natural saber-se tudo. Se calhar, o melhor é que deuses e homens continuem a ser paralelos, mas que nunca se juntem no final. Não haveria paciência para deuses-homens e, muito menos, para homens com a mania que são deuses. Paralelos ou não, tenho conhecido alguns destes. Homens e mulheres que são deuses. Quer dizer, olhavam-se no espelho e reflectiam-se como tal. Os seus olhos apenas viam as suas vaidades e poder aparente, julgando-se no direito fazer dos homens seus brinquedos. E assim foi durante algum tempo. Homens nas mãos dos deuses. Deuses a brincarem com os homens. Até que um dia, a vida ou ou destino como os homens lhe chamava quando não sabiam o que dizer, se encarregou de corrigir a brincadeira dos homens-deuses. Foi quando começaram gritar ‘Ai meus deuses’, enquanto tentavam libertar-se dos fios de marioneta com que os deuses, os verdadeiros, os manipulavam como brinquedos. Talvez nunca venham a perceber o que realmente lhes aconteceu. Talvez isso, na verdade, nem lhes interesse. Quanto aos homens, os reais, esses puderam seguir o seu caminho, juntando-se no final, como as paralelas. E finalmente puderam ser eles a olhar pelas escotilhas das suas almas e ver o que se passava no andar de cima. Ou de baixo.

Negrumes

Fecho os olhos
Deixo que a respiração da angústia
Faça parte do cenário
Um homem de negro levanta o pano
Porque a peça vai começar

Ao contrário de ontem
Há mais negro para colorir
De todos os tons de branco
Um homem de negro levanta o machado
Porque é preciso matar a noite

Histórias do Norte – Cap: 7 - À porta

Desde sempre que as portas me fascinam. Há sempre algo de intrigante nelas. Umas, fortes e robustas, obrigam-nos a esforços para se abrirem. Outras, pura e simplesmente, abrem-se para passar. Outras ainda precisam sempre de um jeitinho familiar. São sempre um marco para nos deslocarmos para outro lado. Ora porque estão abertas e conseguimos, sem dificuldade, ir para onde queremos ou conseguimos espreitar de longe e vislumbrar, nem que seja um pouco, do que vai para lá da porta. Ou então, porque estão fechadas e espreitamos pelo buraco da fechadura, tentando perceber o que se passa. Ou porque, estando fechadas, temos de bater na esperança de que alguém nos ouça. Ou ainda, em alguns lugares nos obriga a saber uma palavra-passe, a conhecermos o porteiro ou a estarmos numa guest-list, coisa muito comum às portas dos dias que correm. Perante uma porta fico sempre dividido ‘Entro, não entro?’. Quando uma porta se abre, abre-se também um novo mundo. E se ela for das boas, a porta claro, muitos outros se podem abrir também. Mas também quando uma porta se fecha, outras se abrirão. É a lei das portas. Eu pessoalmente gosto de portas. Fechadas ou abertas. Fechadas porque se podem abrir. Abertas porque se podem fechar. Mas há um tipo de portas de que não gosto muito – as entreabertas. Não são de confiança.

domingo, 24 de julho de 2011

Confusear

Ele falousou mais uma vez entre estranhos. Sentia-se à vontade. Quanto mais pensava para dentro, mais falousava para os demais. E mesmo confuseando o cérebro, descobriu que na vida é preciso minuciar os dias, perguntar as horas, dissecar os segundos, enfuriar as têmporas. Já recontente com essa descoberta, despediu-se dos outros e canetou noite dentro à procura de um redesamar profundo.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Feitiços-de-café

Miguel sempre foi assim, desde a escola. Perito em post-its. Perito em achar-se o máximo. Sim, em colocar post-its nas costas das colegas da turma e receber os louros por isso. O seu grande troféu foi ganho quando conseguiu deixar um nas costas da professora de inglês ‘Miss you my dear’. Na semana seguinte recebeu a resposta ‘Miguel – zero’, bem assim no meio da pauta. E para todos admirarem. Este pequeno desaire nunca afectou a imagem que tinha de si próprio. Habitava um ego difícil de abalar. Um dia, porém, os seus olhos cruzaram-se casualmente com Rita, que tomava um café numa esplanada escondida ali para a Estrela. Nunca conseguiu encontrar as palavras que explicassem porque ela o fazia sentir criança, e ao mesmo tempo, o impedia de avançar. Nem todos os post-its do mundo o faziam decidir. Seriam os olhos que o evitavam sempre à mesma hora, naquele sítio que se tornou, do costume? Talvez o café tivesse feitiços. E com feitiços não se brinca. Talvez Rita não fosse para o seu post-it. Mas numa daquela manhãs, naquela manhã com M grande, encheu-se de coragem. Hoje o café seria por sua conta. Roubou a bandeja emprestada e, sem que ela perecebesse a sua presença, Miguel serviu-lhe o café e sentou-se. ‘É por minha conta’. Ela olhou-o, primeiro com despreza, depois desfez a máscara. ‘Dez pontos pela ousadia. Estava a ver que o mundo acabava e nunca mais te decidias. Todos estes dias a desinteressar-me e tu, nada? Finalmente ganhaste coragem.’ ‘O teu café tem feitiços.’ ‘Não sejas parvo e vem comigo’. Levantaram-se e Rita beijou-se levemente nos lábios e mais intensamente depois. Quando Miguel tentou prolongar este momento, Rita colocou-lhe o dedo nos lábios num gesto sensual de silêncio. Miguel sorriu, caindo logo de seguida. O coração apenas conseguiu recordar aquele momento, por muito que tentasse recordar-se do resto. Rita, olhando-o pela última vez, retirou calmamente um post-it da sua mala. Colou-o o peito de Miguel ‘O café tem feitiços’. Virou costas, apertando no bolso do casaco aquele pequeno frasco, num gesto de quem não conseguia ter sequer um esboço de remorsos. Seguiu o seu caminho. O mesmo que recordava aquele momento, há vinte anos atrás em que retirou um post-it do seu largo casaco de malha castanho-escuro ‘Feia’. Apenas aquilo. Doeu. Mas Miguel não tinha dado pela diferença.

Monstro-belo

Miguel tinha dupla personalidade, achava ele. Nunca sabia se ia acordar ‘belo ou monstro’. Hoje acordou belo. Sentou-se na cama e contemplou-se ao espelho do fundo do quarto. Estava irreconhecivelmente belo. Sentia-se irreconhecivelmente belo. Era a primeira vez, já fazia algum tempo que isso acontecia. O segredo, percebeu-o naquele instante, era afinal simples. ‘Parar no 3º shot’. Saiu e foi tomar o pequeno-almoço. Cereais com leite e uma frutinha. Fazem melhor.

fragmentos

Há mais fragmentos hoje

sem saber se são da memória,
ou de todas as memórias
que ainda se esforça por esquecer
Há mais fragmentos que ontem

um coração dorido ainda

e uma palavra cola-tudo

que não cola realmente nada,

que não se colasse

com um pouco de amor

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Histórias do Norte – Cap: 9 - Regressos

Os regressos são assim. Diferentes. O dever cumprido, ou não. Os novos mundos, ou não. Experiências. Nunca percebi bem se gosto, ou não, dos regressos. Se calhar, porque me obrigam a pensar sempre demais. Mas que quando regresso venho sempre diferente do que fui, isso é mesmo verdade. É uma coisa Vogleriana. E desta vez, essa regra do regresso segue a regra e não a excepção. Estou diferente. Apaixonei-me, estou mais rico e não é porque importei meia-dúzia de coroas. Se fosse um herói diria que o regresso a casa se fazia com vitórias e histórias para contar. Como não sou trago só as histórias. As minhas. Bem-vindo de volta.

Histórias do Norte – Cap: 8 - Aquilo tudo

Vasco tentou lidar com aquilo tudo, mas não conseguiu. Por isso, bateu com a porta e saiu. Num filme teria dito ‘Vou comprar cigarros’. Como o filme era apenas o dele disse ‘Volto já’. O que Vasco não disse é que o seu ‘já’ era parecido com o de algumas lojas que fecham à hora de almoço. E assim foi.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Histórias do Norte – Cap: 6 - Amo-te, assim mesmo sem te conhecer bem

Amo-te desde o primeiro momento em que te conheci. Desde o primeiro olhar. Desde que percebi que te tinhas atravessado no meu caminho. Seria fácil dizer que as tuas formas discretas, mas cheias de sentido e de sentidos, me apanharam de surpresa. Seria ainda mais fácil dizer que cada detalhe teu me faz redescobrir-me ainda mais. Que cada coisa que me dizes, mesmo que não entenda nada, se descodifica naturalmente no meu léxico de todos os dias. Que ao pé de ti, ou mesmo em ti, me sinto em casa. Às vezes olho-te com aquela distância de quem apenas se conheceu ontem e pergunto-te ‘porquê?’. E a resposta é sempre a mesma ‘porque tinha de ser’. Porque mesmo que sejamos estranhos num outro país, a vida, aquela linha de que todos falam, acaba sempre por nos juntar. ‘Tinha de ser’. Aquilo não me saía da cabeça. Ao pé de ti, e em ti, estou feliz. Como um miúdo numa loja de Legos. Sinto-me mais perto de mim. Sei que talvez não seja fácil, mas ainda vou encontrar um adjectivo, por pequeno que seja, que consiga definir-te na perfeição. Não com exactidão, porque és muito mais que isso. Para mim foste, e és, uma das coisas mais fantásticas que a vida conseguiu embrulhar de presente. Sabes que com a outra mais importante ninguém consegue competir, não é? Cada vez que te olho ou percorro o teu corpo, não me interessa que sejas muito maior que eu. Que sejas bastante mais velha e vivida. Apenas me interessa, de uma forma cegamente egocêntrica, o que me fazes sentir. E mesmo que a nossa relação não seja mais que um flirt fugaz de alguns dias, sabes que te amarei para sempre. E isso não se diz a todas. Eu não te escolhi. Foste tu que o fizeste. Não consigo perceber nem quando, nem porque o fizeste. Apareceste-me do nada, um dia sem avisar. Eu sempre soube que um dia havíamos de estar juntos. E agora estamos. Ambos sabemos que para já, não será para sempre. E que relações à distância nunca dão os melhores resultados, para além de e-mail bacocos e colecções de selos. Por isso, vou aproveitar-te até ao último momento. Ouvir o teu respirar quando acordo. O teu silêncio quando adormeço. A tua pose do meio-dia, ou as notas de música que ofereces quando te percorro de um lado ao outro. Sei agora que realmente me conquistaste como nenhuma outra. Tenho apenas aquela sensação de pena. Sim, de pena, de não ter tido tempo para ser eu a conquistar-te também. Bem, vou andando. Amo-te Copenhaga.

Histórias do Norte – Cap: 5 - Cor-de-talvez

O dia tinha começado escuro. Todos os dias desde há muitos ponteiros, começavam entre o breu e o cinza escuro, na vida de Simone. Mas ela não se importava. A vida era mesmo assim. Um dia qualquer haveria de acordar e o ser já teria mudado de cor. Até lá tinha, tinha de esperar. ‘Espera sentada’, diziam-lhe os amigos. E ela assim ficava, bem sentada e confortável à espera que a cor mudasse. Umas vezes, olhava pela janela e imaginava-se de pincel e tinta na mão, a pintar o céu. Pelo menos aquele céu que conseguia ver. ‘E não seria de azul, porque assim o céu fica igual a todos os outros céus. Talvez um laranja ou um verde. Sempre é diferente e ninguém tem um céu assim.’ Mas sempre que pegava num pincel, a janela fechava-se e transformava-se num muro, tão alto e tão sólido que a impedia de sair. Andava cansada de tentar saltar muros. E este era, ou pelo menos dava a entender que seria intransponível. Se calhar não gostava de verde ou de laranja. No fundo, Simone sabia que a cor não era o mais importante. E isso dava-lhe o conforto necessário para não tentar mais, para não decidir. Talvez um dia, talvez num dia bem cinzento, quase breu, alguma Skands lhe apareça à frente, bem loura e bem raínha e apenas lhe diga ‘Vamos?’. Talvez aí, talvez nesse minuto, nesse segundo, consiga de vez pegar nos seus pincéis, nos seus lápis de cor, nos seus guaches e vá pintar a tela. Aquela a que, mesmo nos dias cinzentos, quase breu, chama ‘sua vida.’

terça-feira, 12 de julho de 2011

Histórias do Norte – Cap: 4 - A mesa do lado

Filipe não percebia palavra. Mas soava-lhe a música clássica. Aristocrática, nobre, melodiosa, harmoniosa. Aquela harmonia quase sempre impossível de atingir noutras batidas. Apesar de nunca se ter dedicado a perceber e a ouvir sentindo, a música clássica, estava encantado com aquele andamento. Assim para o alemão, mas com canela. Parece que tinham pegado na pauta e lhe haviam limado todos os ‘érres’ de que não precisava. Bendita grosa. Filipe deixou-se embalar pelo classicismo das palavras, pela leveza das notas, pelo imperativo dos pontos finais, pela emoção de algumas vírgulas, pelas entoações e expressões e respirou fundo, mesmo estando provado que isso não lhe fazia bem. Sem querer, voou por cima das nuvens e fechou os olhos. Assim, conseguia ver-se melhor.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Histórias do Norte – Cap:3 - Ao porto

Daqui tudo parte e tudo chega. Tudo parte cheio de esperança. Tudo chega, muitas vezes, sem ela. Eu vou ver se a encontro. A partir daqui. Do porto.

Histórias do Norte – Cap:2 - She (não, não é a do Elvis Costello)

Ela olhava para cima em busca de um ponto que lhe desse a segurança que precisava para aquele passo. Os olhos grandes, de um castanho escuro mate, davam-lhe um encanto especial. Mas ao mesmo tempo, mostravam um pouco da ansiedade que envolvia levantar os pés da terra. Muito quieta, acabava por resignar-se ao seu destino. Apenas os olhos a denunciavam. Os seus longos cabelos, sem uma única onda, desciam-lhe calmamente pelos ombros, desenhando uma cascata quase perfeita. O medo que se estampava no seu rosto era arredondado pela inocência que parecia ainda ter. Não tive coragem de lhe perguntar o nome logo quando reparei que a sua face me fazia olhar uma e outra vez, até perder a conta. Reparei nela ainda em terra, mas a caminho das núvens. Mas foi em Santarém, bem por cima do vale de Almeida Garret, que marcou a atmosfera. Uma pose mais decidida. Um deslumbramento mais terreno. Ainda faltam 2.500 quilómetros para chegar. Tenho a certeza que irá ainda revelar-se. O seu ar tem algo de islâmico. E isso atrai-me. Esse desconhecido que faz pensar tudo duas vezes antes de dar um passo, por mais pequeno que seja. Um desconhecido que talvez se esconda por trás dos seus longos cabelos ou mesmo dos seus olhos castanhos escuro mate. Um desconhecido que sei que não vou descobrir, mas posso imaginar. Pedaço a pedaço. Lá fora, em Santarém, estão 13º negativos, mas isso não me faz arrefecer o coração. Percebi pelo título do livro que lia, vagarosa e com uma vontade intermitente, que falava português. A minha língua, que afinal era nossa. Pelo menos talvez nos consigamos entender nas palavras. Ela deve ser muito nova. Já hipnotizado pelo tapete rolante das malas, ganhei coragem e perguntei-lhe. ‘Sylvia. Eu sou a Sylvia!’ Antes disso, atrevi-me a adivinhar todos os nomes, menos esse. E muito menos com um ‘Y’ para me impedir de acertar. Se não me tivesse dito que estudava posologias e receitas, esse seria, por certo, a última coisa em que pensaria que investia a saúde dos seus neurónios. Talvez algo mais livre, mais libertador, mais aberto. Mas isso não é o mais importante. Porque hoje ela traz na bagagem, no meio de sonhos e incertezas, 36 dias para ser o que quiser. Para travestir esta cidade com o seu sotaque encantador. Longe do sol e do sangue-quente. Longe de uma alegria que nunca se põe no final de cada dia. Longe da espontaneidade e leveza com que se atravessam os dias no outro lado do Atlântico. Mas, quem sabe se não é ela quem os vai trazer para cá?

Histórias do Norte – Cap:1 - Ligações

O restaurante era o italiano de esquina. Ao fundo, um luminoso Rolex marca o tempo da zona. Toalhas de pano muito brancas, copos de pé alto. Dignos de receber visitas ilustres. Como é o caso. Ela acabava de chegar à cidade e impunha-se pela sua presença, fosse onde fosse. Bonita, sem uma única marca da idade a trespassar-lhe as frontes, era impossível passar sem que todos reparassem nela. Pelo menos é o dizem. Ela preferia exactamente o oposto ‘trazia-me menos complicações’, costumava dizer. E, no fundo, era verdade. Ela parecia um íman a atrair problemas. Um íman com uma elegância feminina que faz suspirar quem com ela se cruza. Eram uns atrás dos outros. Os problemas, claro. E os homens, de certa forma também. Ainda este último lhe havia tentado regar a Louis Vitton com um frasco de gasóleo disfarçado de Channel 5. Sim, porque a gasolina está pornograficamente cara. Era dona de um magnetismo para estas pelejas que não se conheciam grandes adversários à altura. Sentou-se, olhando em volta, na esperança de ter conseguido a missão de passar despercebida. Impossível. Mais de metade dos olhares, por entre copos e sabores, fixaram-se nela. Naquele mesmo segundo, cravou os seu solhos no chão, na tentativa diga-se com justiça, bem conseguida, de fazer parar aquelas ligações. Conseguiu-o pelo menos durante alguns segundos. Respirou bem fundo antes de voltar a uma pose mais social. No seu movimento elegante de olhos, ao voltar o seu olhar de novo para cima, depois daqueles breves momentos de tréguas, os seus cruzaram-se com dois enormes círculos castanhos escuros. Igualmente magnéticos. Igualmente a chamarem problemas. Igualmente impossíveis de não olhar. Era ela agora, quem não conseguia desfazer aquele elo. Embaraçada, um pouco, pela situação, mas sem nunca desviar o olhar, estudou apressadamente o menu e pediu: ‘mesa para dois!’. E beberam vinho italiano que acompanharam com pasta e umas ingénuas folhas de rúcula. Só a Louis Vitton ficou à margem, bem escondida debaixa da mesa, ligada à terra. Mesmo a gasolina ao preço que está, nunca se sabe.